Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Achas mesmo, Valéria? Não
tem nada a perder, senhora! Era já minha intenção visitar o santuário de Iria
Flavia… Mas tens razão! Apressemos a viagem. Não durmo com receio de perder o
meu filho e de desiludir o meu marido. Por aqueles dias, a intempérie estava
para durar. A Galécia era pródiga em chuvas, ventos e nevoeiros invernais, mas
parecia que Prisciliano convocara para o seu nascimento todas as forças e
energias da natureza no estado mais radical. Junto ao mar, Iria Flavia apenas
distava doze milhas de Villa Aseconia. Era lá que se erguia o poderoso bastião
galaico da deusa egípcia, apesar de ter conhecido melhores tempos, antes da
chegada das primeiras baforadas de cristãos à Galécia. Arménio, a senhora manda
aparelhar o carro! Amanhã sairemos bem cedo!, ordenou o ruivo Flaviano,
vigoroso, com a mão sobreposta num altar votivo ao deus Júpiter. É preciso protegê-la
desta maldita chuva. Ainda que jovem, da mesma idade da matrona, Flaviano era o
curador da Villa Aseconia.
Nascera na casa de Priscila e o
pai fizera questão de que a acompanhasse para a nova residência, juntamente com
alguns escravos. Flaviano sempre fora muito chegado à patroa, com quem brincara
em criança e que conhecia desde que nascera. Rapidamente conseguiu a confiança
de Lucídio, que anuiu à esposa quando esta lhe pediu para o tornar responsável
pela administração da villa na
sua ausência, após a morte do velho capataz da família. O curador tinha-se
levantado do triclínio, após um bem nutrido jentaculum, e atravessara o peristilo, em passos firmes,
rumo ao exterior. Sacudindo pedaços de pão agarrados à túnica branca,
apressou-se a transmitir as instruções exactas de Priscila a Arménio, o
condutor de carros e liteiras.
Está bem!, respondeu, sem entusiasmo.
Arménio…!, interpelou Flaviano, com os lábios retorcidos e o cenho franzido. Sim,
Flaviano… Esta é a oportunidade de te redimires das tuas imprudências! Não fui
imprudente, como sabes! Já discutimos o assunto e terei mais cuidado! Não voltará
a acontecer! Arménio era filho de um escravo que morrera tempos antes, depois
de atender a uma ordem de Lucídio. O pai subira a uma árvore para retirar um
gato que passara dois dias sem comer e beber, num dos galhos mais altos. Quando
o tentou apanhar, o ramo quebrou e homem e animal morreram estatelados no chão
de pedra. Arménio não mais perdoara ao senhor, remoendo pelos cantos da villa a sua culpa pela morte
do pai. Foste, sim! Onde se viu fugir da villa
durante tanto tempo?! Sabes que isso é crime e só a boa vontade dos
senhores te salvou a pele.
Flaviano
decidira manter Arménio debaixo de olho, até porque havia assegurado aos patrões
que aquela leviandade não voltaria a acontecer. E a minha palavra?! Não me
deixes ficar mal! Não deixarei, descansa! E, como sabes, não viajaste com o
senhor para Bracara Augusta, como de costume… Esta é mesmo a tua última
oportunidade! Flaviano voltou à sala de estar, onde recebera as ordens de
Priscila. A jovem mulher, apesar do parto recente e da debilidade patente no
corpo frágil e nos olhos tristes, soergueu a voz, para perguntar em modos
suaves, como era o seu timbre: está tudo preparado?! Tudo haverá de ficar
preparado, Priscila…, desculpe, senhora! Acabo de garantir que o carro estará
pronto à hora certa e que teremos condutor, respondeu o dedicado curador, cobrindo
a mulher com um olhar protector. Sim, porque Arménio é o único que temos, de
momento… O rapaz está recomposto? Flaviano tossicou para aclarar a voz, mas
aproveitou para ajeitar o pensamento à resposta a dar a Priscila». In
Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN
978-972-068-096-9.
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