Cortesia
de wikipedia e jdact
Cruzando o Mar Estreito. Putney, 1500
«(…)
Ah, diz Kat, eles vivem brigando.
Garotos. Na margem do rio. Certo,
deixe-me ver se entendi bem, começa Morgan. O garoto chegou em casa ontem com
as roupas rasgadas e os nós dos dedos esfolados e o velho disse: o que é isso,
andou brigando? Então Walter esperou até ao dia seguinte e atacou o garoto com
uma garrafa. Em seguida, derrubou-o no pátio, cobriu-o de pontapés, espancou o
menino com uma tábua de madeira que estava ali perto... Ele fez isso? Toda a
paróquia já sabe! Tinha gente fazendo fila no cais para me contar, eles já
gritavam a história para mim antes mesmo que o barco atracasse. Morgan
Williams, escute isso, seu sogro espancou Thomas e o garoto foi rastejando à
beira da morte para a casa da irmã, eles chamaram o padre... Chamou o padre? Ai,
essa família Williams!, reclama Kat. Vocês se acham tão importantes por aqui...
As pessoas fazem fila para lhe contar coisas... E porquê? Porque você acredita
em qualquer história. Mas é verdade!, exclama Morgan. Tim-tim por tim-tim. Não
é? Excepto a história do padre. E que ele ainda não morreu. Com esse minucioso
estudo da diferença entre um cadáver e meu irmão, sem dúvida vai acabar na
bancada dos magistrados.
Quando eu for magistrado, vou
atirar o seu pai nas galés. Multá-lo? Não tem multa que chegue para ele. De que
adianta multar uma pessoa que simplesmente vai roubar ou extorquir o mesmo
valor de algum inocente que cruzar o seu caminho? O garoto geme: mas tenta
fazê-lo sem interromper a conversa. Calma, calma..., murmura Kat. Eu diria que
os magistrados já tiveram o bastante, diz Morgan. Quando ele não está aguando a
cerveja que produz, está criando animais ilegalmente em território público;
quando não está explorando áreas públicas, está atacando um juiz de paz; quando
não está bêbado, está desmaiado de bêbado; e se ele não for morto antes do seu
tempo, não existe justiça neste mundo. Já acabou?, pergunta Kat. Ela dá as
costas ao marido. Tom, é melhor ficar connosco por enquanto. Morgan Williams, o
que me diz? Quando ficar bom, ele será útil no trabalho pesado. Tom pode fazer
as contas, ele sabe somar e..., qual era a outra coisa? Ora, vamos, não riam de
mim, quanto tempo acham que eu tive para aprender números, com um pai daqueles?
Se sei escrever o meu nome, é porque o Tom aqui me ensinou. Ele não vai..., diz
o rapaz, gostar disso.
Ele só consegue articular frases
curtas, simples e declarativas. Gostar? Ele deveria envergonhar-se, declara
Morgan. Kat comenta: quando Deus fez meu pai, deixou a vergonha de fora. O
garoto diz: porque..., pouco mais de um quilómetro. Ele pode, fácil..., vir
atrás de si? Ele que experimente! Morgan exibe o punho novamente: seu nervoso
soquinho galês. Após Kat terminar de limpá-lo e Morgan Williams deixar de se
gabar e de tentar reconstituir o ataque, o garoto dormiu por uma ou duas horas
para se recuperar. Durante esse tempo, Walter chegou à casa com algum conhecido
e houve certa gritaria e pontapés nas portas, mas o barulho chegou ao garoto de
modo abafado e ele pensou que talvez fosse um sonho. Agora, a questão na sua
mente é o que vou fazer?, não posso ficar em Putney. Em parte porque as
lembranças de anteontem e da primeira briga estão retornando, e ele acha que
talvez uma faca tenha aparecido em algum momento, que fora enterrada em alguém,
e que esse alguém não era ele; resta saber se teria sido por ele. Nada disso
está claro na sua mente. Apenas a sua decisão sobre Walter: Para mim, chega. Se
ele vier atrás de mim novamente, eu vou matá-lo, e se eu o matar, vão-me enforcar,
e se vão enforcar-me, quero que seja por um motivo melhor». In Hilary Mantel, Wolf Hall, 2009, Editora Record, tradução
de Heloisa Mourão, 2011, ISBN 978-850-109-768-2.
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