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Carta
de Mariana Alcoforado a sua mãe
Senhora Minha Mãe
Não vos podendo ver mais nesse
martírio inventado de desgosto e dúvida por mim, vos escrevo logo após vossa
partida (hoje precipitada a senti e em desprendimento me foi clara: pois
pensais acaso que não?) a dar desta vossa filha conhecimento e das causas que
me trazem neste cruel e profundo abatimento ou medo.
Talvez de amor vos fale ou de
morte; de clausura (aquela a que desde menina me votastes, tão bem paramentada,
em sossego posta), de hábito: aquele que visto e aquele adquirido de mim e através
de mim também de outrem, mesmo agora criada tanta distância. Tendo o mar entre
nós penso inevitável ser esquecida, eu o esqueça, me esqueça. Deixais de vez
vosso susto que já nada mais me pode acontecer neste mundo senão o viver
sozinha a imaginar-me, lamentando-me de sorte tão adversa (de braços de homem
passei aos meus e talvez por minha única culpa, que mulher não o soube
aprisionar, ou repelir a tempo), enganando-me em cartas que tanto mais entendo
de meu engenho que de paixão, construídas todas elas em língua não materna
(assim vos recuso, de vós me liberto um pouco, ó vingança, ó riso...) tão doce
e amarga tornada, desde que da boca dele a ouvi em proveito de meu uso.
Sabei Senhora Mãe: nada do que é
vosso me importa, nem pensamentos, nem costumes. Costumes que apesar de tudo e
todavia, continuo a aceitar, de lei e cobardia, aceitando este estado onde de
acordo com meu pai me pusestes por homem não ter nascido e entrave fazer a meu
irmão e minha irmã, de dote, podendo ela assim arranjar marido que a receba
apesar de feia, não vos custando eu mais que parto e raivas acesas ao me
saberdes por amada e possuída de corpo contra vossas ordens, mando, vontades;
apesar mesmo de vossas ameaças.
Mas tranquilizai que abandonada
me encontro e isso, sei, vos dá alegria, a verdade foi, enraivecida não me
terdes perdoado usufruir da vida o que da vida jamais usufruístes. Agora,
inquieta encontro vossa atenção por minha saúde e desgosto por minha apatia...,
nada mais me restando senão aceitar essas atenções, fingindo não ver nelas a
secreta alegria de me encontrardes repelida, logo vós vingada de minha ousadia
em recusar o que generosamente meus pais me haviam dado ao me mandarem para
este convento..., castigo sofro por me ter entregue: amante de homem por
prazer; entrega nomeada de amor e
de amor me haja perdido, diz dona Brites.
Embora..., de prazer me dei e
conquistei, desafiando de aparência o mundo e a mim mesma nesse desafio de
coragem, inconsciência ou grande tentação de fuga, a única que desde sempre se
me deparou. Minha trégua, paz. Limite de mim própria, Senhora Mãe.
Que mulher vós nunca fostes nem
eu jamais o serei...
Pouco vos escondo e em nada vós
me entendeis. Com esta carta sei apenas conseguir reacender raivas, orgulhos e
sentidos de posse sobre mim. Bem me podeis executar, quem me defende? A lei? A
que dá aos pais todos os direitos de mordaça, aos machos primazia e à mulher
somente o infinitamente menos nada, com dádivas de tudo?
Olhai que não me iludo, Senhora,
este convento será meu túmulo, guardião feroz em morte como jamais o foi em
meses de fala e agasalho. Que isso lhe é alheio. Me alheio. Permiti-me apenas
alheada ficar, só isso peço: deixai-me fiar os dias que me restam com seus fios
tecidos hora a hora, em fuso de memória. Assim me encontrastes e quisestes saber
os motivos com a certeza deles, primeiro falando-me com azedume, depois com
certa brandura, tentando tirar por astúcia aquilo que de mim afinal não consigo
esconder. Prefiro o azedume, Senhora Minha Mãe, que a ele estou mais habituada partindo
de vossa mercê.
Que mal vos fiz nascendo?
É como se a vossas entranhas
tivesse sido obrigada e me gerásseis de culpa, quem sabe..., e bem contrariada,
por certo. Gostaria que dissésseis a meu irmão, muito lhe agradecer o não me
tornar a chamar ao parlatório; assim me pouparia a penosa resolução de me negar
a vê-lo, ou, com total precisão: a ouvi-lo. Os seus assomos de cólera deixam-me
num estado de nervos deplorável, não queira ele tornar sua irmã mais
desgraçada.
Soubesse ser por amizade que ele
o faria..., porém apenas é seu nome que defende, invocando princípios de honra
que ora me convencem, ora me aterrorizam.
Comunicai-lhe que o
cavaleiro de Chamilly jamais voltará ao nosso país e como de lhe escrever
larguei para sempre, não preciso mesmo de meu irmão licença para o fazer, como
até aqui; assim ando eu ao mando e ao uso de todos...
Beijo-vos a mão,
Senhora Minha Mãe, como prova de grande consideração
Vossa filha
dedicada
Mariana
28/Mar/71
In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa
Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada,
Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.
Cortesia
PdQuixote/JDACT