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Carta
encontrada entre as páginas de um dos missais de Mariana Alcoforado
Senhora
Guardai o respeito que deveis a
vós própria.
Melhor serve o silêncio e a
dignidade o amor do que o queixume e a mentira. Pensai que conheço de mais
vossos excessos, vossas raivas súbitas e vossos caprichos, por experiência. Bom
será para ambos me afastar, não dando ouvidos nem crédito a estratagemas que
mal vos fica usar, não sendo eles sequer, vede, de vossa condição e estado.
E se o amor e a paixão invocais,
que provas me destes de paixão, senão daquela que alimentais por vós mesma em
devoradora chama?
Senhora, guardai-vos de vós que
de vós só vos vem veneno; guardai-vos de vós que de vós me guardo e me afasto,
transbordando de pasmo por tanta malícia e ódio e egoísmo ter encontrado numa
só mulher.
Preferível vos será aceitar o
mundo como vos dão e a ele vos moldardes, pois nenhuma fuga vos é possível.
Muito me condoí de vossa vida,
Mariana, muito me indignou vossa prisão atrás dessas grades que vos detêm
cruelmente o sangue e o riso. Porém, ao conhecer-vos e ao me tomar de amor por
vós, entendi que bom só será vos conservar presa e obrigada à recusa do mundo.
Donzela vos tive, não conhecendo
no entanto mulher em mais depravado avanço de sentidos, êxtases, ânsias
desvairadas. Sob poder me tivestes, e bem o sabíeis, doente de vossa febre que
me incendiava o corpo. Desmaiada vos colhi em meus braços, desmaiado eu em
vosso ventre, meu precipício e fim, meu absurdo princípio e morte todas as
vezes mais rasgada e mais profunda onde me afundava e afundava sob vossos olhos
firmes não toldados..., que nunca os olhos, Senhora, vos vi toldados...
Perdido me encontrei por vos amar
e achado desamado à força de, mau grado, vos examinar, e em estado de razão me
ver forçado a afastar-me, pois morte caberia a um de nós se tal não o fizesse.
Que despeito vos arrebata! Tão
baixo por ele vos deixais ir, que usais de modos e fingimentos aprendidos por
certo com vossa criada.
Não vos canseis, mais não me
vereis, de vós fujo e o confesso, sem qualquer vergonha ou remorso, pois sei
até onde me usastes sem em abandono vos entregardes jamais.
Como é possível
perder-vos, recusar-me a vos ver, a vos ter, a vos amar...
Permiti que me vá,
Mariana. Não estais ainda cansada de assim me atormentardes?
Culpado sou de quê?
Em mim vos vingais de
injustiça que vossa mãe comete em violência vos exigindo sacrificada nesse
convento...
Se em casa de Deus
sereis obrigada a viver, confortai-vos com ele entregando-vos à piedade em vez
de vos entregardes ao culto do ódio.
Secai essas lágrimas
que sei de despeito e não de amor; recusai invenções de tão pouco engenho e
arte que indignas são de vossa inteligência que muita é e de mais para mulher.
Mas se sinceras forem
vossas palavras e temores, tranquilizai-vos: estais tão prenha de vós própria,
Mariana, que jamais vosso ventre engendraria outra vida que não a vossa e a
vossa ainda e sempre.
Atenciosamente
Noel
28/Mar/71
In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa
Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada,
Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.
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