Cortesia
de wikipedia e jdact
Canção
das Mulheres
«(…) Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos
questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem
compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o
dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e
possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem
sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento
que lhe confere alguma ordem. Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida
não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente
reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada. Parece fácil: escrever
a respeito das coisas é fácil, já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso
realizar nada de espectacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem
mesmo ser brilhante, importante, admirado. Para viver de verdade, pensando e
repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e
amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança. Questionar o que nos é
imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom,
mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se
humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Sonhar,
porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a
pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que
trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for. E que o mínimo
que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.
O menino
e a sua mãe
Faz
uns trinta anos, um menino e a sua mãe voltavam das
compras no autocarro quase vazio. Ele segurava no colo o presente cobiçado: um
microscópio, de verdade, dado pelo pai, mas a mãe fora com ele comprar. De vez
em quando ele passava a mão no pacote: parece mentira, não é, mãe? Olhar
sonhador. No meio do trajecto houve então um desses diálogos inesquecíveis. Mãe,
que igreja é essa? Nossa Senhora Auxiliadora. Porque tem tanta Nossa Senhora?
Não era só uma? É uma sim, filho, mas ela tem muitos nomes. E o Nosso Senhor é
são Pedro? Não, é Jesus, ora. Quem casou com ela foi são José. São Pedro era
amigo de Jesus. A mãe suspirou: não praticar religião em casa dava nisso. Ah...,
e por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa Senhora? Os
olhos azuis, calmos mas interrogativos, começavam a deixar a mãe inquieta. Acho
que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho. Mas o José não
era o pai dele? Não era de verdade, o pai dele era Deus, José era pai adoptivo.
Ah... Então Jesus não nasceu da sementinha do José? O silêncio no autocarro
começava a se tornar imenso. O menino falava em voz alta e clara, p’ra ele era
tudo natural, assim ensinavam em casa.
A mãe pensou por um momento, por que a gente inventou isso
de falar das coisas como se fossem naturais? E, embora se considerasse uma
mulher razoavelmente moderna, com uma visão saudável da vida, que estava
transmitindo aos filhos num tempo em que o tema não era tão francamente abordado,
naquela hora quase duvidou de que fossem assim tão naturais. Afinal, estavam em
público. O menino a seu lado porém aguardava resposta, respostas. Não, filho,
Deus fez brotar a sementinha directo em Nossa Senhora, foi um milagre. Então
não foi como nas pessoas? Agora o silêncio podia ser cortado com faca. Não,
filho, não foi. Ah... A mãe se fez de distraída, olhava pela janela, sentindo
os outros passageiros aguçando o ouvido, como será que ela vai se sair dessa? O
menino pensava concentrado. Mãe, como é que antigamente, assim beeeem
antigamente, no tempo dos dinossauros por exemplo, as primeiras pessoas sabiam como se fazia p’ra
ter bebé, se não tinham ninguém p’ra ensinar p’ra elas?
Essas coisas a natureza ensina. Mas
a natureza não é pessoa p’ra
ensinar a gente... Quer
dizer, quando a gente cresce aprende por si. No
olhar azul transparecia uma certa pena, quem sabe a mãe não era tão inteligente
assim. O menino, generoso, resolveu mudar de assunto. Mãe, olha, aí estava escrito rua Mozart! Será que ele mora aqui? Ele quem, filho? O Mozart, mãe, ora. Quem ia ser? Não,
filho, ele viveu na Europa. Ah
é? Até achei que era nos Estados Unidos. Porque
Estados Unidos? A mãe começava a se
divertir, aliviada com aquele diálogo menos perigoso. Porque é lá que moram pessoas importantes, o presidente Kennedy e o
Cyborg. Ah... Finalmente desembarcaram; ainda segurando o pacote, o menino
retomou o seu ar sonhador. Mãe, como eu tenho um pai bom, né?
Mas aí pensou melhor, espiou de relance com arzinho maroto a mãe
que levantava, sorrindo, um dedo em riste, e emendou bem depressa: e mãe também, claro...» In Lya Luft,
Pensar é Transgredir, 2004, Rio de Janeiro, Editora Record, 2009, 2011, ISBN
978-850-109-376-9.
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