domingo, 23 de março de 2014

Ao Encontro de Espinosa. Leituras. António Damásio. «Ambos passaram a maior parte das suas vidas no paraíso holandês, um deles por direito de nascimento, o outro por escolha deliberada, Descartes tinha decidido no princípio da sua carreira que as suas ideias entrariam em provável conflito com a igreja Católica…»

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«(…) A igreja considerou o livro um ataque à religião organizada e ao poder político. Depois disso Espinosa deixou de publicar. Os seus últimos escritos ainda estavam na gaveta da secretária no dia da sua morte, mas Van der Spijk tinha instruções precisas: a secretária foi colocada numa barca com rumo a Amsterdão, onde foi entregue ao verdadeiro editor de Espinosa, John Rieuwertz. A colecção dos manuscritos póstumos, a Ética, constantemente revista, a Gramática Hebraica, o segundo e incompleto Tratado Político, o Ensaio para a Melhoria da Compreensão, e a Correspondência, foi publicada nesse mesmo ano de 1677 sob as inicias BdeS. Devemos recordar esta situação sempre que pensamos nas províncias holandesas como um paraíso de tolerância intelectual. Eram, de facto, um paraíso, mas a tolerância tinha limites.
Durante a maior parte da vida de Espinosa, a Holanda foi uma república, e durante a sua vida adulta a política holandesa foi dominada por Jan de Witt no seu papel de Grande Pensionário. De Witt era ambicioso e autocrático, mas era um espírito esclarecido. Não se sabe ao certo se Witt e Espinosa se conheceram pessoalmente, mas sem dúvida Witt conhecia o trabalho do filósofo, e é provável que tenha contido, mais do que uma vez, a fúria dos políticos calvinistas mais conservadores na altura em que o Tractatus começou a causar escândalo. É sabido que Witt possuía o Tractatus desde 1670, e pensa-se que se aconselhou com Espinosa. Seja como for, não há qualquer dúvida de que Witt manifestou interesse pelo pensamento político de Espinosa e tinha considerável simpatia pelas suas opiniões religiosas. Espinosa tinha boas razões para se sentir protegido pela presença de Witt.
Esta relativa segurança de Espinosa terminou abruptamente em 1672 durante uma das horas mais negras da história da Holanda. Num episódio inesperado que define uma era politicamente volátil, Witt e o seu irmão foram assassinados por uma turba, em consequência da suspeita infundada de que eram traidores da causa holandesa na guerra com a França que então se desenrolava. Os atacantes espancaram e esfaquearam os irmãos Witt e arrastaram-nos até aos cadafalsos da cidade, onde ambos chegaram já morros. Os corpos foram despidos, pendurados como num talho, esquartejados, e os fragmentos vendidos como recordações ou comidos no meio de um regozijo doentio. Tudo isto se passou perto do sítio onde estou neste momento, praticamente ao virar da esquina da casa de Espinosa. O episódio chocou a Europa intelectual do tempo. Leibniz declarou-se horrorizado, tal como o eternamente calmo Huygens na segurança da sua vida parisiense. Mas para Espinosa o acontecimento foi devastador. O revelar da natureza humana no seu mais selvagem e vergonhoso abalou a equanimidade que Espinosa mantinha com enorme disciplina. Espinosa preparou um dístico com as palavras ultimi barbororum (o cúmulo da barbaridade), e dispunha-se a ir colocá-lo junto do que restava dos irmãos Witt. Felizmente que a sensatez de Van der Spijk levou a melhor. Van der Spijk fechou a porta da casa à chave e assim evitou que Espinosa enfrentasse uma morte certa. Espinosa chorou em público, pela única vez, ao que parece. O porto de abrigo intelectual, mesmo que imperfeito, tinha desaparecido.
Olho para o túmulo de Espinosa, uma vez mais, e recordo-me da inscrição que Descartes preparou para o seu próprio túmulo: aquele que se escondeu bem, viveu bem. Apenas 27 anos separam a morte de Descartes e de Espinosa (Descartes morreu em 1650). Ambos passaram a maior parte das suas vidas no paraíso holandês, um deles por direito de nascimento, o outro por escolha deliberada, Descartes tinha decidido no princípio da sua carreira que as suas ideias entrariam em provável conflito com a igreja Católica e com a monarquia francesa, e partira discretamente para a Holanda. Ambos tinham tido que esconder e fingir, e, no caso de Descartes, talvez distorcer as suas próprias ideias. Ambos actuaram com sensatez e por razões óbvias. Em 1633, um ano depois do nascimento de Espinosa, Galileu foi interrogado pela inquisição romana e preso na sua própria casa. Nesse mesmo ano, Descartes suspendeu a publicação do seu Tratado do Homem, e, mesmo assim, teve de responder a ataques ferozes às suas opiniões. Em 1642, contradizendo o seu pensamento inicial, Descartes postulava uma alma imortal separada de um corpo perecível, talvez como uma tentativa desesperada de evitar novos ataques. Se foi essa a sua intenção a estratégia funcionou, embora não propriamente durante a sua vida. Mais tarde, dando novas provas de prudência, trocou a Holanda pela Suécia, para onde foi ensinar a irreverente rainha Cristina. Descartes morreu no meio do seu primeiro Inverno em Estocolmo, aos 54 anos. Devemos estar gratos por viver numa época bem mais tolerante, mas, mesmo assim, continua a recomendar-se prudência». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.

Cortesia de PEA/JDACT