sexta-feira, 7 de março de 2014

Textos Dispersos. Flores da Inocência. José Duro. «… são os ossos da garruda... e pelas suas faces rudes e crestadas rolaram muitas lágrimas de sublime sentimento. Depois, lá foi pelas serranias apascentar o manso rebanho, com a resignação das almas ignorantes»

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Silvério e a Garruda
«Escondera-se o sol nas candentes bandas do poente; e a atmosfera coara morosamente os derradeiros clarões da sua auréola de deslumbrante luz, numa concupiscência indescritível. Do alto das escabrosas penedias ressoavam numa monotonia estridente e lúgubre, os gritos das aves agourentas, vindo unir-se ligeiramente com o vago troar dos ralos e das cigarras no fundo ressequido dos prados.
Nas balsas marginais dos riachos, os rouxinóis entoavam os seus alegretos; poemas rústicos de saudades imensas. À beira dos caminhos os ingénuos e acetinados pirilampos, mostravam o brilho um tanto fosco da sua luz subtil aos pequenos viageiros do crepúsculo, talvez invejosos dela. E pelas quebradas dos montes, ecoava o pungente ulular dos famintos lobos em busca dalguma presa inocente, refeição dessa noite.
Então o pastorinho Silvério, cansado das fadigas, e ébrio do sol daquele dia de Agosto, começou de reunir o manso rebanho, que todos os dias apascentava com a resignação das almas ignorantes. E depois de reunido, lá foi por atalhos e veredas conduzi-lo ao bardo, onde o pai o esperava para proceder à contagem. Contadas que foram, faltava uma ovelha, era a garruda.
E ele, o Silvério, sempre paciente e alegre, sem esperar que lho dissessem, tornou aos montes em busca da ovelha perdida. Chegando àqueles onde houvera estado durante o dia, sobe pelos pedregulhos grosseiros e irregulares, espraia a vista pelas cumeadas, embrenha-se nas fragas, chora, chega mesmo a zangar-se, e gritando sempre, garruda!... Garruda!... todos os esforços que emprega são baldados. Só uma cousa notaria se não fora o estado aflitivo em que se encontrava: Era que pelas quebradas dos montes, não se ouvia agora só o pungente ulular dos famintos lobos em busca de alguma presa inocente, mas sim também o rosnar surdo e raivoso de feras em disputa.

No dia seguinte, à hora matinal em que nas balsas marginais dos riachos os rouxinóis começavam a entoar desafogadamente os seus alegretos, passava o Silvério com o rebanho por uma vereda espessa e tortuosa, quando junto duma seara viu uns pequenos ossitos recentemente roídos, e ensanguentados.
Levado por um vago pressentimento, aproxima-se, mas de repente solta um grito lancinante ao mesmo tempo que por entre soluços murmura: são os ossos da garruda... e pelas suas faces rudes e crestadas rolaram muitas lágrimas de sublime sentimento. Depois, lá foi pelas serranias apascentar o manso rebanho, com a resignação das almas ignorantes». In J. A. Duro Junior, Portalegre, 24-8-93, Diário de Elvas, nº 55, 4-9-1893.

In José Duro, Textos dispersos, Coordenação de António Ventura, edições Colibri, 1999, ISBN 972-772-120-6.

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