O ‘Arranque’ dos Descobrimentos
Porque foi conquistada Ceuta?
«A conquista da cidade de Ceuta, em 1415,assinala o início da expansão ultramarina portuguesa: é um
dado consensual e que não oferece dúvidas a ninguém. Existe, contudo, uma série
de factos, quer de pormenor quer de enquadramento, que envolvem a expedição
militar (e o seu sucesso), que são geralmente omitidos ou minimizados e que
permitem compreender melhor o real significado e o impacto deste evento. De um
modo geral, considera-se este feito de armas como um arranque, um impulso e um
primeiro passo para o expansionismo português e, mais concretamente, para a aventura
dos Descobrimentos, mas esta ideia esconde alguns equívocos e necessita
de alguns esclarecimentos. A primeira ideia a reter é a de que a expedição
portuguesa a Ceuta não foi inédita. Na verdade, a iniciativa enquadrou-se na
realidade medieval de confronto entre dois blocos, um cristão, a norte, e um muçulmano,
a sul. Para o homem europeu da época, o Islão era o inimigo figadal por dois
motivos: a sua religião era uma perversão abominável da verdadeira fé (e
geralmente tratada como uma seita, uma corrupção do cristianismo e não como uma
verdadeira religião) e, mais importante, os seus seguidores haviam invadido e
ocupado, desde o século VII, todo o Médio Oriente e o Magreb, anteriormente
cristãos.
Havia, portanto, um sentido de legitimidade nas acções que visassem
recuperar para a cristandade as terras que haviam sido ilegitimamente
usurpadas, sobretudo Jerusalém e a Terra Santa. Foi este, grosseiramente, o
objectivo das expedições conhecidas como Cruzadas, entre os séculos XI e XIII.
Por extensão, entendia-se portanto que a guerra ao mundo islâmico, ainda que longe
do horizonte da Palestina, era um contributo parcial para este objectivo comum,
prestigiado e louvável, segundo os padrões mentais da época. O papado dava
cobertura ideológica, concedendo remissão dos pecados e outras benesses
espirituais a estas iniciativas, quer se tratasse de expedições militares, quer
de guerra de corso no Mediterrâneo ou no estreito de Gibraltar. É neste
contexto que devem ser entendidos os diversos assaltos a cidades do norte de
África, como a mesma Ceuta, Salé e Larache, no século XIII, e Mahdia (na actual
Tunísia), nos fins do século XIV. S. Luís, rei de França, chegou mesmo a
preparar uma cruzada contra Tunes, em 1270.
Na Península Ibérica, o panorama era ainda mais claro: o avanço para sul dos
reinos cristãos era considerado uma Cruzada
do Ocidente, e a ideia de que se tratava de uma simples retoma, de uma Reconquista, subsistiu até aos
nossos dias. Portugal cessara o seu avanço com a conquista do Algarve, nos fins
do século XIII, mas permaneceu a noção de que esta reconquista deveria
prosseguir além-mar. Afonso IV obteve uma bula de cruzada do papa para esse
efeito e a criação simbólica de um bispado de Marrocos, tutelado por Portugal e
Castela, é um sinal claro de que a intenção de avançar no norte de África
estava viva». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque
foi Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.
Cortesia de E. dos Livros/JDACT