Maria Magdalena. A anti-odisseia da discípula amada
«(…) Os pecados
variavam: ser mãe solteira, ser bonita demais, feia demais, retardada
mentalmente, ignorante ou por demais inteligente, ou vítimas de estupro. Eram
mal alimentadas, surradas, humilhadas e seus filhos levados à força para longe
delas. Cabe frisar que a sentença era eterna, não tinha data para terminar.
Suas identidades foram adulteradas já que tiveram os seus nomes substituídos
por nomes de santas. Constata-se que tudo isso aconteceu quando o mundo
assistia aos movimentos pela emancipação da mulher. Estas últimas filhas de Madalena têm
hoje mais de 70 anos, perderam o contacto com familiares e não têm saúde, nem dinheiro
para viver dignamente, já que foram colocadas nas ruas após o fechamento dessas
lavanderias. A princípio, a Igreja Católica se eximiu de qualquer
responsabilidade. O caso virou escândalo na Irlanda, quando por acaso um
cemitério clandestino foi descoberto num quintal de um dos conventos em Dublin.
Lá foram enterradas quase 3.000 filhas
de Maria Madalena nos últimos 35 anos. Muitas ex-filhas de Madalena
estão exigindo indenização da Igreja Católica por cárcere privado. Segundo a reportagem
da Folha de São Paulo, A Igreja já admitiu o seu erro e está estudando
uma forma de compensar essas mulheres pelo dano causado. Imaginemos o que
essas filhas de Madalena pensavam dela [...] O último asilo Madalena na
Irlanda foi fechado em 1996.
Estima-se que cerca de 30.000 mulheres passaram pelas lavanderias
da Irlanda. Esse episódio foi retratado no filme Em Nome de Deus, (The
Magdalene Sisters), que estreou nos cinemas em 2004. Até Mel Gibson, no seu mega sucesso A Paixão de Cristo,
seguiu a tradição, identificando Madalena com a mulher acusada de adultério e
perdeu uma oportunidade ímpar de esclarecer essa confusão. Pelo contrário,
colaborou para a manutenção desse imperdoável equívoco.
Por outro lado há um
debate em torno do verdadeiro significado das palavras de Jesus dirigidas à
Madalena, o mistério do Non me tangere
– Não me toques somente relatado pelo evangelista João no capítulo
20: Recomendou-lhe Jesus: Não me
toques, porque ainda não subi para meu Pai. Outras versões trazem não me detenhas. Esta frase tem
sido mal interpretada e alguns vêm nela uma espécie de reprimenda de Jesus ao
excesso de amor de Madalena. Para nossas considerações, buscamos uma tradução
mais acurada do texto original grego de João que seria: Não se apegue a mim ou não
me abrace. Primeiramente, Jesus não se afastou rapidamente dela,
tampouco lhe ordenou categoricamente que o fizesse. O texto é claro, Jesus recomendou-lhe e também
atesta a importância dela, já que uma mulher – Madalena - poderia
detê-lo, retardá-lo em sua missão maior. Uma simples mortal poderia deter um
deus imortal que se mostra impressionado, quase que perturbado com o amor
assustadoramente humano daquela mulher. Madalena era demasiadamente humana e Jesus
naquele momento fazia a travessia entre o humano e o divino, estava a caminho
da transcendência, não havia assumido ainda a sua natureza imortal, seja lá o
que isso signifique, apenas isso. Lembremos que estamos adentrando o campo da
fé [...] O amor de Madalena desconhecia as fronteiras e impedimentos
teológicos. Na narrativa de Mateus 28, Madalena toca em Jesus, abraçando seus pés
e isso ocorre com muita naturalidade. Não objectivamos levantar polémica, mas é
estranho o facto de que, apesar de Jesus e Madalena serem tão amigos, tão
íntimos, a ponto de Ele se impressionar, logo após a ressurreição, com o facto
de Madalena chorar e perguntar-lhe amorosamente: Por que choras?,
os quatro evangelistas não relatarem uma única frase de Jesus direccionada à
Madalena na cruz.
Jesus dirige palavras,
segundo o evangelista João no capítulo 19, para sua mãe (Mulher, eis aí o
teu filho) e para o discípulo amado (Eis aí a tua mãe), mas para
Madalena, que estava aos pés da cruz, abraçada aos dois, diante do corpo
agonizante de Jesus, com seus olhos em direção a Ele, nenhum consolo é
mencionado, nem um único monossílabo é emitido em direcção a ela. Pensamos que
esse silêncio de Jesus na cruz somente com relação à Madalena é mais um
mistério [...] Ou talvez o silêncio dele em relação àquela mulher revelasse
mais do que todas as palavras poderiam dizer. E se Ele não disse realmente nada
para ela, ela se mostra verdadeiramente uma mulher de fé, pois se lhe foi
negada palavra de consolo na cruz, isso não a impediu de vigiar o túmulo e ter
a sua recompensa: foi a primeira a ver Jesus ressuscitado e teve a oportunidade
de conversar a sós com Ele antes de qualquer outra pessoa. É interessante
observarmos que o Apóstolo Paulo, em sua carta aos Coríntios, extirpa
completamente o elemento feminino da ressurreição. As cartas do Apóstolo Paulo
são anteriores aos Evangelhos, provavelmente foram escritas entre
54-57
de nossa era. Os Evangelhos apareceram em torno do ano 70.
Observemos o que diz a
narrativa paulina em I Coríntios 15:
[...] que Cristo morreu
pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou
ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas e, depois, aos doze.
Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a
maioria sobreviveu até agora [...] Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por
todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como
por um nascido fora do tempo.
Se analisarmos o
conjunto das cartas de Paulo, elas citam diversas mulheres, inclusive, se
referindo em Romanos 16: à Junia como Apóstola, no entanto não diz uma palavra
sequer sobre Madalena. A Legenda
Áurea ( Jacopo de Varazze/1230-1298), um repositório de
vidas de santos, ampliou mais ainda a confusão em torno da biografia de
Madalena, pois retratou Maria Madalena como sendo a mesma Maria, irmã de Marta
e Lázaro, rica e pecadora, dona de um castelo em Magdala e de propriedades em
Betânia. Em 1521, Jacques Le
Févre distinguiu as denominadas três Marias do seu compactado rosto único,
publicou uma tese intitulada De Maria
Magdalena, foi condenado pelo parlamento de Paris como herege e a
Sorbonne condenou a sua tese. Lutero, Erasmo de Roterdão e Le Fèvre
foram chamados de anticristos por terem a mesma ideia sobre Madalena. Temos
então dois arquétipos de mulheres no Novo
Testamento: Maria, mãe de Jesus, casada, pura e assexuada, modelo a
ser seguido, e Madalena, sexuada, solteira, meretriz
e modelo a ser expurgado, uma espécie de segunda Eva. Não estará aqui a
raiz da não-ordenação de mulheres até
aos dias de hoje? Grande penitência foi imposta sobre Madalena: 2 mil
anos de arrependimento por um pecado sobre o qual não há comprovação nenhuma.
Em 1988, o Papa João Paulo II chamou
Maria Madalena de a apóstola dos apóstolos num documento oficial da Igreja e nele
afirmou que na prova mais exigente de
fidelidade e fé, a crucificação as
mulheres tinham se mostrado mais fortes que os apóstolos». In
Salma Ferraz, organização, Maria
Madalena das páginas da Bíblia para a Ficção, Textos Críticos, Eduem, UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN
978-85-7628-334-8
Cortesia de Eduem/JDACT