O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Dado que estas heranças são heranças que continuaram, o cristianismo
encontrou-as diante de si ao longo de toda a sua existência. A título de
hipótese de partida, parece-me que uma periodização das atitudes dominantes dos
dirigentes intelectuais e espirituais do Ocidente medieval permite captar a
evolução dos modos de colocar-se em relação ao maravilhoso. Durante a alta Idade
Média, mais ou menos do século V ao século XI, é extremamente difícil adoptar,
no campo da cultura, uma cronologia muito pormenorizada. Em geral, creio poder
dizer-se para este período que se verificou uma espécie, se não de rejeição,
pelo menos de repressão do maravilhoso. No decurso dos meus estudos ocupei-me da
hagiografia da alta Idade Média, em particular da hagiografia merovíngia,
mais ou menos ao mesmo tempo em que a estudava, num trabalho muito mais
aprofundado, o colega checoslovaco Frantisek Graus, e ambos chegámos
sensivelmente às mesmas conclusões. Para quem vai à procura de folclore, os
textos hagiográficos da alta Idade Média são, pelo menos a uma primeira
análise, muito frustrantes, e se caímos na ilusão de poder recolher neles uma
grande cópia de dados etnológicos, o balanço acaba por ser magro, à primeira
vista. O que neles encontramos é essencialmente a preocupação por parte da Igreja
de transformar, até dar-lhe um significado de tal modo novo que o fenómeno que
temos perante nós já não é o mesmo, ou de ocultar e eventualmente até destruir
aquilo que para ela representava um dos elementos quiçá mais perigosos da
cultura tradicional, por ela globalmente qualificada como pagã: o
maravilhoso, que exercia sobre os espíritos uma evidente sedução, que
constitui uma das suas funções na cultura e na sociedade.
Nos séculos XII e XIII, pelo contrário, parece-me encontrar uma irrupção
do maravilhoso na cultura dos doutos. Não me empenharei aqui a exprimir uma
valoração nem a dar uma explicação do fenómeno. Mas, globalmente, penso que se
pode dizer duas coisas. Por um lado, retomo as hipóteses de Erich Köhler sobre
a literatura cortês ligada aos interesses sociológicos e culturais de uma faixa
social ao mesmo tempo em ascensão e já ameaçada; a pequena e média nobreza, a
cavalaria. É o seu desejo de opor à cultura eclesiástica ligada à aristocracia
não já uma contracultura, mas sim uma cultura diferente, que sente como mais
condizente com a sua índole e da qual pode fazer mais tranquilamente aquilo que
quer, que a leva a chegar até uma reserva cultural existente, ou seja, àquela
cultura oral de que o maravilhoso é um elemento importante. Não é por acaso que
o maravilhoso tem um papel tão grande nos romances de corte. O maravilhoso está
profundamente ligado a esta procura da identidade individual e colectiva do
cavaleiro idealizado. O facto de as provas do cavaleiro passarem por toda uma série
de maravilhas, maravilhas que ajudam (como certos objectos mágicos) ou
maravilhas que é preciso combater (como os monstros), levou Erich Köhler a
escrever que a própria aventura, representada pela valentia, pela procura da
identidade por parte do cavaleiro no mundo da corte, é em última análise ela
própria uma maravilha.
Por outro lado, o que a meu ver pode explicar a irrupção do maravilhoso
não é apenas a força da sua pressão, mas sim o facto de que a Igreja já não tem
razão, como de facto tinha na alta Idade Média, para levantar barreiras contra
o maravilhoso. Ele é agora menos perigoso, a ponto de a Igreja poder já
domesticá-lo, recuperá-lo. E o encontro entre essa pressão proveniente de uma
certa base laica e a relativa tolerância da Igreja que explica a irrupção do
maravilhoso na época gótica. A terceira fase é um pouco diferente, porquanto
embora permaneça sempre fundamental uma explicação de tipo sociológico, o que
permite defini-la são sobretudo considerações mais propriamente literárias e intelectuais.
É aquilo a que eu chamei a estetização
do maravilhoso. O segundo problema que me ponho é o do papel do maravilhoso dentro
de uma religião monoteísta. Neste campo a investigação está bem longe de estar
concluída. Muito trabalho resta ainda por fazer, mesmo só para se conseguir uma
boa base dos dados. Creio no entanto poder determinar, em particular para o
período central, séculos XII-XIII, e sobretudo a nível de vocabulário, uma
diversificação no mundo do sobrenatural que permite situar melhor o maravilhoso
em relação à religião cristã». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il
quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e
o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-44-1563-5.
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