domingo, 9 de março de 2014

Macau Histórico. Edição de 1926. Montalto de Jesus. «Ljungstedt, no entanto, ignora a seguinte versão de Du Halde: … O vice-rei comunicou esta vitória ao imperador que emitiu um édito pelo qual dava Macau a esses mercadores da Europa, a fim de que eles se pudessem lá instalar»

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Um reinado de terror criado pelos piratas. O cavalheirismo das armas portuguesas
«(…) Ljungstedt ignora do mesmo modo a versão do historiador espanhol, cujo trabalho aparece na lista de autoridades especialmente consultadas por ele, fr. Juan de la Concepcion, que, ao relatar o feito de armas pelo qual os portugueses ganharam Macau, frisa que o arrojado pirata invasor das Filipinas, Li Ma Hong, era um sobrevivente das hordas de Chang Si Lao. Faria Sousa e Semedo, segundo Ljungstedt, alegam que os portugueses obtiveram autorização para habitar Macau porque tinham limpado a ilha de piratas. Desta forma, o insidioso detractor de Macau, repisando sempre na autorização dos mandarins, falseia os relatos de dois eminentes historiadores, quanto ao facto de os portugueses terem sido presenteados com a posse de Macau e de que, tendo arrebatado o lugar aos piratas, à ponta de espada, fundaram a colónia incondicionalmente.
A versão de Faria Sousa é, em resumo, a seguinte: ermo árido, abundante em rochas, o que tornava o local facilmente sustentável e bem adaptado para refúgio de bandidos, Macau era, então, uma temida guarida de piratas. Os chineses queriam desalojá-los dessas cavernas mas, evidentemente, faltava-lhes a coragem para o fazer e mal avistaram os portugueses ao largo de Sanchuan apressaram-se a oferecer-lhes o perigoso local para habitação com a condição de estes expulsarem os piratas. Os portugueses aceitaram prontamente o papel de Hércules contra Cacus: cobiçavam o prémio e esperavam poder alcançá-lo com a sua coragem, e embora os bandidos tivessem a vantagem de ser bons conhecedores dos caminhos labirínticos do lugar, foram facilmente derrotados. Então, os vencedores, com as armas numa mão e a picareta na outra, fundaram a cidade instalando-se onde lhes apeteceu, visto não haver lá ninguém com quem partilhar a terra.
Do mesmo modo, relata Semedo, a partir de Macau uma grande horda de piratas hostilizava os distritos adjacentes; os chineses tentaram desenraizar o demónio e, quer por temor quer para evitar o risco, sabedores da bravura dos portugueses, pediram-lhes que realizassem a tarefa, prometendo-lhes Macau como residência, se de lá expulsassem os piratas. Os portugueses empreenderam a tarefa com alegria: eram muito inferiores em número mas, mais conhecedores da arte de guerrear, investiram contra o inimigo de tal maneira que sem sofrer grandes baixas, as infligiram pesadamente, cedo se achando senhores da situação. Imediatamente se puseram a construir, cada um escolhendo para si o local que mais lhe agradava. Se Macau tivesse sido conseguido por conquista, argumenta Ljungstedt, o facto não teria sido ignorado pelos primeiros jesuítas escritores na China. E não o foi: Semedo, que veio para Macau no princípio do século XVII, era um desses escritores. A famosa Déscription de la Chine de Du Halde é um repositório de informações autênticas, reunidas pelos jesuítas numa época em que gozavam de oportunidades excepcionais na China. Ljungstedt, no entanto, ignora a seguinte versão de Du Halde:

No reinado de Kia Tsing um pirata chamado Tchang Si Lao, que pirateava pelas águas de Cantão, tomou Macau e sitiou a capital da província. Os mandarins pediram ajuda aos europeus. Estes, que estavam a bordo dos seus barcos de mercadorias, puseram fim ao cerco e perseguiram o pirata até Macau, onde o mataram. O vice-rei comunicou esta vitória ao imperador que emitiu um édito pelo qual dava Macau a esses mercadores da Europa, a fim de que eles se pudessem lá instalar.

Segundo foi vigorosamente relatado por Sonnerat, Cantão era então assediada por bandidos que, saídos das distantes Ilhas dos Ladrões, assaltavam os barcos nativos. Fracos e temerosos, os chineses não mais se aventuraram a afastar-se da costa, ou a lutar contra um grupo de duros malfeitores a quem se contentavam em chamar selvagens. Coube a um povo europeu mostrar que esses selvagens não eram invencíveis. Ao desbaratá-los, os portugueses levaram a cabo a tarefa que os chineses ansiosamente desejavam. Estes, armaram-se todos, mas apenas para serem meros espectadores. Os portugueses alcançaram vitória após vitória, eventualmente varrendo a importante horda. Como recompensa os vencedores asseguraram uma pequena faixa de terra árida, onde fundaram a colónia de Macau, e obtiveram também grandes privilégios, de que foram mais tarde despojados. Certamente a perda daqueles privilégios, que foram substituídos pelas sempre crescentes exigências chinesas, que incluíam o foro do chão, colocou Macau numa posição que parecia substanciar as alegações dos cronistas chineses acerca da situação originária da colónia. Ljungstedt opina que Macau foi obtido apenas pelo pagamento do foro do chão e que seria mais seguro atribuir a sua posse à generosidade imperial do que ao direito de conquista, considerando que o local teria de ser abandonado se as autoridades chinesas decidissem proibir o fornecimento de provisões e ordenar a saída dos comerciantes, artífices e criados chineses. Por outras palavras, Ljungstedt insinua que, estando Macau em situação precária, o processo usual adoptado pelos gananciosos mandarins para obter presentes para o Cérbero poderia também ter servido para obrigar os portugueses a silenciar as tradições que honram os anais das relações europeias com a China.
Até onde as opiniões preconceituosas de Ljungstedt ainda prevalecem, pode bem ser avaliado pelo seguinte: Os portugueses exigiram sempre para Macau uma independência da jurisdição chinesa, que o governo chinês, até 1887, nunca consentiu. Muito se tem falado de um golden chop, que se diz ter sido concedido pelo imperador chinês e ter-se perdido representar o título de posse da colónia mas não há registo de alguma pessoa não oficial o ter jamais visto. Os factos são todos contra a reivindicação. O foro, um reconhecimento total de soberania, foi pago a Heungs-han Hien desde o princípio até ao coup d'état do governador Amaral em 1849. Mas, com efeito, esse foro surgiu de um simples agrado ao hai-tao; e mais de uma vez ele foi recusado por ordem do imperador, reimposto pelos mandarins e, em vão, o governo de Macau a ele se opôs insistentemente outra vez. Não há um pacto formal, uma prova documental para demonstrar que a posse original de Macau fosse um mero arrendamento, como se pretendia, em vez de uma cedência voluntária, em paga pela libertação de Cantão, como foi amplamente atestado pelo testemunho histórico europeu. Dificilmente se pode dizer que a versão portuguesa, durante longo tempo sustentada em condições deploráveis e derrogatórias, esteja influenciada por qualquer raison d'état. Nem pode haver razão convincente para que muitos historiadores imparciais e fidedignos, Raynal, por exemplo, apoiassem essa versão, a não ser pelo amor à verdade e à justiça». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.

Cortesia da FOriente/JDACT