«Os Contos e Histórias de Proveito e Exemplo trazem a
marca de um género agarrada à sua letra primeira. A designação que o autor
transmite no Prologo a Rainha Nossa Senhora, [...] cõtos de aventuras, historias de proveito
& exemplo, cõ algüs ditos de pessoas prudentes & graves [...], continua
a vincular o livro a uma tradição literária de que os géneros, enquanto tipos
de discursos diferenciados, fazem parte. Mesmo se essa inclusão num género é
algo indistinta, como aliás vinha acontecendo desde Boccaccio e o marco
paradigmático que ficou a ser o seu Decameron:
[...] quero contar cem novelas (ou fábulas,
parábolas, histórias conforme queiramos dizer) [...]. O aparecimento de uma
nova espécie, a novela breve,
vinha abrir uma brecha declarada no sistema tripartido tradicional dos géneros
literários. Se é verdade que esta infiltração do menor, dos contos breves
e das historietas, era já uma infiltração sem idade, sobretudo se nos
lembrarmos dos contos orientais (que, no Ocidente, só começam a ter voga e a
ser conhecidos em fins do século XVII), e da autonomia que vinham ganhando
progressivamente os exempla
morais, também não é menos verdade que essa menoridade se manteve sempre
identificada como tal e, portanto, como um acrescento (metaforicamente, um
tumor, que lentamente ia minando com as suas raízes o corpo doutrinal)
incomodativo a uma límpida teoria dos géneros. Como nos diz Carlos García
Gual, En la sucesión histórica de los
géneros literarios en Grecia. épica, lírica, drama, relato histórico y
filosófico, la novela ocupa un último lugar. En esta sucesiva aparición de
géneros literarios, típica de la cultura griega, pero al mismo tiempo
realización ejemplar de unas categorías de la Filosofía de la Historia, con
parangón en otras culturas europeas, la novela aparece como producto tardio en
una época de decadencia. Hijo tardío de una família otrora noble y pródiga
viste un pintoresco ropaje, compuesto de remiendos abigarrados de sus hermanos
mayores, y quedan en sus malhas reliquias gloriosas, como en un almacén de
trapero. No es un producto clásico, sino más bien algo ya anticlásico en su
misma raíz.
É precisamente este
posicionamento anticlássico (causa ou
consequência?) que faz com que o género novela não seja tratado em
nenhuma das poéticas da época, e daí que nunca tenha ficado sujeito a regras de
composição com proporções fixas. Assim, teóricos como Walter Pabst recusam-se a
reconhecer o estatuto de género à novela breve, que durante muito tempo
terá existido sob a forma oral e de que, sem dúvida alguma, os exempla são o primeiro
reflexo enquanto tipo aproximado do género literário. Ora, é precisamente aos
primeiros autores de novelas que o problema do género se
põe inevitavelmente, sobretudo na época do Renascimento, em que se
procurava manter e revitalizar as tradições estéticas herdadas da Antiguidade Clássica.
As leis que regem os géneros literários (não só as de Aristóteles e Horácio,
mas também as que tinham sido elaboradas durante o Renascimento, sobretudo em
Itália, como imitação da Antiguidade) transformam-se em autoridades incontestáveis.
Perante esta autoridade do dogma, que os autores das novelas curtas não podiam esquecer,
há uma série de manifestações teóricas, registadas sobretudo nos proémios,
nos prefácios, nas dedicatórias, que muitas vezes entram em contradição
com a prática literária. Isto é, o posicionamento teórico mantém as novelas
breves ligadas a regras inquebráveis como a
verosimilhança e a conveniência, a honestidade, as unidades de acção,
episódios, lugar, tempo e estado de ânimo, ou seja, a imitação, o mais perfeita
possível, da natureza; mas a
prática literária nem sempre corresponde a isso.
A novela breve aparece como o campo ficcional por
excelência, onde novas experiências e outros modos de olhar para a Natureza
são possíveis: Frente a la
epopeya y los otros géneros literarios, la novela es pura ilusión; es el primer
género en que los griegos no creen en absoluto, es sólo ficción. Por tanto
puede dar o crear todo lo que se le pide, con una libertad formal sin
precedentes. Esta liberdade formal, esta abertura constitutiva aparece
claramente em oposição com a noção de género Renascentista, que fornecia um
quadro harmonioso e regrado, onde a criação era possível. Daí que as
designações comecem a proliferar e que, no fundo, qualquer uma delas sirva para
identificar essa novidade que saltou as normas. Ora, no meio desta
arbitrariedade de designações, alguma coisa havia de ficar. É a narrativa,
forma literária englobante que parece incluir todos estes significantes, aos
quais não corresponderia porventura um significado muito explícito. Este nome
aparece assim como a síntese do múltiplo e a procura de um significado sobre a
aparente arbitrariedade da realidade nomeada de modos tão heterogéneos. A mesma
multiplicidade arbitrária que foi algumas vezes utilizada como a justificação
máxima (a mais fácil e também a mais frágil) de uma resistência à teoria por parte da novela». In Cristina
Nobre, Gonçalo Fernandes Trancoso, Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, Texto Instrutivo do Século XVI, Lisboa:
1990, Série Halp, 2003, ISBN 1645-5169.
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