«Fabricador de instrumentos de
trabalho, de habitações, de culturas e sociedades. o Homem é também agente
transformador da Historia. Mas qual será o lugar do Homem na Historia e o da
Historia na vida do Homem?»
O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«O problema do maravilhoso numa civilização, numa sociedade, enfrenta-se
antes de mais a um nível que, se não é o mais fundamental, é em todo o caso
primordial: o do vocabulário. Creio ser impossível levar por diante um
estudo sério sobre tal tema se antes não se fizer um reconhecimento adequado do
campo semântico do maravilhoso. Tenho de limitar-me aqui a algumas
considerações elementares, das quais não é no entanto lícito fazer tábua rasa.
A primeira é que, quanto a mim, o termo me parece muito bem escolhido. O maravilhoso: trata-se em primeiro
lugar de saber o que é que entendemos por maravilhoso e de compreender, em
segundo lugar, como é que os homens da Idade Média entendiam e exprimiam aquilo
a que nós hoje chamamos maravilhoso. No Ocidente medieval havia um termo
correspondente. Em ambiente culto era de uso corrente na Idade Média o termo mirabilis,
que tinha mais ou menos o mesmo sentido do nosso adjectivo. Contudo, há que sublinhar
que os clérigos da Idade Média, se quisermos ser precisos, não dispunham
de uma categoria mental, literária, intelectual, que seja exactamente sobreponível
àquilo a que nós chamamos o
maravilhoso. Ao nosso maravilhoso
corresponde mais o plural, mirabilia. Se se pode portanto
reconhecer uma continuidade de interesse entre a Idade Média e nós por um mesmo
fenómeno a que chamamos o maravilhoso,
deve notar-se que, onde nós vemos uma categoria, uma categoria do espírito ou
da literatura, os homens cultos da Idade Média e os que dela recebiam a sua
própria informação e formação viam, sem dúvida, um universo, e isto é muito
importante, mas um universo de objectos, uma colecção mais que uma categoria. E
temos depois o problema da etimologia. Com o termo mirabilia estamos perante
uma raiz mir (miror, mirari)
que comporta algo de visivo. Trata-se de um olhar. Os mirabilia
não são naturalmente apenas coisas que o homem pode admirar com os olhos,
coisas perante as quais se arregalam os olhos; originariamente há, porém, esta
referência ao olho que me parece importante, porquanto todo um imaginário pode
organizar-se à volta desta ligação a um sentido, o da vista, e em torno
de uma série de imagens e metáforas que são metáforas da visão. Se
pensarmos no muitas vezes citado livro de Pierre Mabille, Le Miroir du merveilleux (1962), somos levados a
fazer uma aproximação particularmente pertinente para o Ocidente medieval entre
mirari,
mirabilia
(maravilha) e miroir (embora o latim
tenha aqui speculum, donde o
italiano specchio [e o
português espelho]; mas o francês restabelece parentescos) e tudo aquilo
que um imaginário e uma ideologia do miroir-espelho podem representar.
Depois do nível do vocabulário e, sob alguns aspectos, como acabamos de ver, a
partir deste nível encontramo-nos perante um grande problema: atrás e,
cronologicamente, depois da língua das pessoas cultas, depois da língua douta,
o latim, há as línguas vulgares. Uma pesquisa sobre o maravilhoso no mundo medieval não pode descurar o contributo
das línguas ditas vulgares. Uma vez mais, limitar-me-ei aqui a uma observação
simples, mas fundamental: quando as línguas vulgares emergem e se tornam
línguas literárias, o termo maravilha aparece em todas as línguas românicas e
também no inglês. Em contrapartida, não existe nas línguas germânicas, onde o campo
do maravilhoso se articulará
de preferência à volta de Wunder. Não creio, mas poderei estar
enganado, que os filósofos tenham explorado este terreno.
Uma vez evocado o problema do vocabulário, parece-me que se põem três
grandes questões a propósito do maravilhoso
no Ocidente medieval. O primeiro problema é o da atitude dos homens da Idade Média
em relação à herança do maravilhoso por eles recebida. E esta é uma questão
particularmente importante. Sabemos que em geral, numa civilização, numa
cultura, se põe o problema destas heranças, conceito que eu prefiro ao de fonte
ou de origem, porque em fonte ou origem se insere de algum modo uma ideia de
desenvolvimento obrigatório, eu diria quase automático, coisa que não me parece
corresponder às situações históricas concretas. Em herança, pelo contrário,
eu vejo um conjunto que de certo modo se nos impõe (uma herança recebe-se, não
se cria); e essa herança obriga a um esforço, para aceitá-la, para modificá-la
ou para rejeitá-la, quer a nível colectivo quer a nível individual. Com efeito,
não obstante a pressão que a herança exerce, pode-se em última análise rejeitá-la
e em todo o caso utilizá-la servir-se dela, adaptá-la desta ou daquela maneira.
Isto é particularmente verdadeiro para a sociedade cristã (e é de crer que o
seja também, por exemplo, para a sociedade muçulmana), pois que o cristianismo
se expande por mundos que trazem como património culturas diversas, antigas,
ricas, e o maravilhoso, mais
do que outros elementos da cultura e da mentalidade, pertence exactamente aos
estratos antigos. Todas as sociedades segregam, umas mais outras menos, maravilhoso, mas alimentam-se sobretudo
de um maravilhoso anterior, no sentido baudelairiano, de antigas maravilhas.
Trata-se de um elemento muito importante da herança. Antecipando um
pouco um outro problema, avanço desde já a convicção de que o cristianismo
tenha criado pouco no campo do maravilhoso.
Eu tentei, não digo definir, o que seria demasiado ambicioso, mas identificar
um maravilhoso cristão. E há-o, sem dúvida; mas não representa no cristianismo
nada de essencial, pelo que tenho a impressão de que se formou apenas porque já
havia essa presença e essa pressão de um maravilhoso anterior, perante o qual o
cristianismo não podia deixar de pronunciar-se, de tomar posição. o
sobrenatural, o miraculoso, que constituem o que é o princípio do cristianismo,
parecem-me diferentes, por natureza e função, do maravilhoso, embora tenham marcado com o seu selo o
maravilhoso cristão. O maravilhoso da época cristã parece-me pois
substancialmente encerrado dentro destas heranças anteriores, de que
encontramos alguns elementos maravilhosos
nas crenças, nos textos, na hagiografia. Na literatura encontra-se quase sempre
um maravilhoso cujas raízes são pré-cristãs». In Jacques le Goff, Il
meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983,
Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa,
2010, ISBN 978-972-44-1563-5.
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