De Volta de Ceuta
«(…) Foi improfícuo o
recurso a pessoas de elevada posição social, que, condoídas do pobre sonhador,
despenhado da altura das suas ilusões, e receosas, por certo, de uma funesta recaída,
se prestavam a ouvir-lhe os queixumes e suspiros magoados.
A quem darei queixumes
namorados
Do meu pastor queixoso e
namorado?
A branda voz, suspiros
maguados,
A causa porque na alma é
maguado?
De quem serão seus males
consolados?
Quem lhe fará devido
gasalhado?
Só vós, Senhor famoso e excelente,
Especial em graças entre
a gente.
Por partes mil lançando
a fantasia,
Busquei na terra
estrella que guiasse
Meu rudo verso, em cuja
companhia
A santa piedade sempre andasse,
Luzente e clara, como a
luz do dia,
Que o rudo engenho meu
me allumiasse;
E em vossas perfeições,
grão Senhor, vejo
Ainda além cumprido o
meu desejo.
A vós se dem, a quem
junto se ha dado
Brandura, mansidão,
engenho e arte,
De um esprito divino acompanhado,
Dos sobr'humanos um em toda a parte.
Em vós as graças todas
se hão juntado;
De vós em outras partes
se reparte.
Sois claro raio, sois
ardente chamma,
Gloria e louvor do
tempo, asas da fama.
NOTA: Segundo W. Storck (Vida de Camões), esta égloga foi
dirigida ao 2.º conde de Linhares, Francisco de Noronha, havendo no principio
da 2.ª estancia uma referência à condessa D. Violante. (Diga-se de passagem que
neste tempo ainda lhes não tinha sido dado o titulo. Só depois da renúncia do
irmão mais velho, Ignacio de Noronha, o braguilha, é que João III, em 1556, declarou 2.º conde de Linhares o
seu antigo embaixador na corte de França). É porém hoje
convicção minha: a) que a egloga se refere a uma pessoa
só; b) que essa pessoa era um
prelado. Relêam-se as três estancias e repare-se nas qualidades que o poeta atribui
ao senhor
famoso e excellente. Sobre o assunto já a D. Carolina Michaelis
escreveu em nota a Storck, Vida de
Camões: A engenhosa
interpretação de Storck será mais plausível para os que lerem a bella versão
germânica, do que para os portugueses que recorrem ao original, porque,
emquanto aquella já vem esclarecida, está este mal ponctuado e bastante
obscuro. Os versos 11 e 12, por exemplo (em cuja companhia a santa piedade sempre andasse) e
principalmente o 20 (dos
sobrehumanos um em toda a parte) ficam, ainda assim, um pouco
enygmaticos, para mim pelo menos. Quem seria esse prelado? Presumo que
é o ditoso
Pinheiro do soneto 190, isto é, talvez o barcelense Rodrigo Pinheiro,
que era bispo de Angra desde 1548 e
esteve à frente da diocese do Porto desde 1552
até 1572. (Sobre a importância que
na corte possuia este prelado, que era governador da casa do civel na occasião
em que foi escripta a égloga, veja-se, por exemplo, Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, III). Em
António Pinheiro, bispo de Miranda e depois de Leiria e ao tempo mestre do malogrado
príncipe herdeiro João, é escusado
pensar, me parece, pois esse só foi elevado à dignidade episcopal no reinado de
Sebastião, quando Julião d’Alva
deixou o bispado de Miranda em 1565.
Segundo alguns camonistas, o soneto 190 refere-se a Gonçalo Pinheiro, então
bispo de Tanger e desembargador do paço.
Cantando por um valle
docemente
Desciam dous pastores,
quando Phebo
No reino Neptunino se escondia.
De idade cada qual era
mancebo,
Mas velho no cuidado, e
descontente
Do que lhe elle causava
parecia.
O que cada um dizia,
Lamentando seu mal, seu
duro fado,
Não sou eu tão ousado,
Que o pretenda cantar
sem vossa ajuda;
Porque, se a minha ruda
Frauta deste favor vosso
for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.
NOTA: Esta egloga,
segundo creio, é dirigida a D. Francisca de Aragão, a tão formosa, como
ajuizada dama da rainha D. Catharina. Dela diz J. Priebsch (Poesias inéditas de Caminha,
Halle, 1898): Raras vezes uma dama da corte portuguesa foi alvo de tantas e tão
enthusiasticas manifestações de admiração... Os poetas mais ilustres do seu
tempo tributaram-lhe homenagem, cantando o esplendor da sua belleza e
lamentando a altivez do seu desdém. Namorador incorrigível, Camões, ao
voltar do Oriente, enfileirou também entre os apaixonados adoradores da que
annos depois era nora de Francisco de Borja. Leia-se, por exemplo, o soneto
268: Este amor que vos tenho, limpo e puro, De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado, Tê-lo dentro nesta alma só procuro./ De haver
nelle mudança estou seguro, Sem temer nenhum caso ou duro fado, Nem o supremo
bem ou baixo estado, Nem o tempo presente nem futuro./ A bonina e a flor asinha
passa; Tudo por terra o inverno e estio deita; Só para meu amor é sempre maio./
Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa, E que essa ingratidão tudo me enjeita, Traz
este meu amor sempre em desmaio. Já agora também o soneto de despedida,
quando a formosa senhora, em seguida ao seu casamento, acompanhou o marido para
a corte do imperador Rodolpho II: Ai imiga cruel! Que apartamento É este que
fazeis da pátria terra? Ai! Quem do amado ninho vos desterra, Gloria dos olhos,
bem do pensamento?/ Is tentar da fortuna o movimento E dos ventos cruéis a dura
guerra? Ver brenhas d’ondas? feito o mar em serra, Levantado de um vento e de
outro vento?/ Mas já que vos partis, sem vos partirdes, Parta comvosco o ceu
tanta ventura, Que se avantaje áquella que esperardes./ E só desta verdade ide
segura, Que fazeis mais saudades com vos irdes, Do que levais desejos por
chegardes. A futura condessa de Ficalho, que ia ser mãe de mais de um
vice-rei espanhol, partia-se, sem se
partir, sem deixar uma parcela do coração ao seu desconsolado adorador.
Nada conseguiram também
as senhoras que se prestaram a ser intermediárias, terceiras, no assunto, e
às quais o poeta se dirige nestas redondilhas:
Pois a tantas perdições,
Senhoras, quereis dar vida,
Ditosa seja a ferida,
Que tem tais cirurgiões».
In José Maria Rodrigues, Camões
e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís
Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214
R64 1910 C1 Robarts/.
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