sexta-feira, 28 de março de 2014

Camões. A Infanta D. Maria. De Volta de Ceuta. José Maria Rodrigues. «A vós se dem, a quem junto se ha dado brandura, mansidão, engenho e arte, de um esprito divino acompanhado, dos sobr'humanos um em toda a parte. Em vós as graças todas se hão juntado; de vós em outras partes se reparte. Sois claro raio, sois ardente chamma…»

jdact

De Volta de Ceuta
«(…) Foi improfícuo o recurso a pessoas de elevada posição social, que, condoídas do pobre sonhador, despenhado da altura das suas ilusões, e receosas, por certo, de uma funesta recaída, se prestavam a ouvir-lhe os queixumes e suspiros magoados.

A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado?
A branda voz, suspiros maguados,
A causa porque na alma é maguado?
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fará devido gasalhado?
Só vós, Senhor famoso e excelente,
Especial em graças entre a gente.

Por partes mil lançando a fantasia,
Busquei na terra estrella que guiasse
Meu rudo verso, em cuja companhia
A santa piedade sempre andasse,
Luzente e clara, como a luz do dia,
Que o rudo engenho meu me allumiasse;
E em vossas perfeições, grão Senhor, vejo
Ainda além cumprido o meu desejo.

A vós se dem, a quem junto se ha dado
Brandura, mansidão, engenho e arte,
De um esprito divino acompanhado,
Dos sobr'humanos um em toda a parte.
Em vós as graças todas se hão juntado;
De vós em outras partes se reparte.
Sois claro raio, sois ardente chamma,
Gloria e louvor do tempo, asas da fama.

NOTA: Segundo W. Storck (Vida de Camões), esta égloga foi dirigida ao 2.º conde de Linhares, Francisco de Noronha, havendo no principio da 2.ª estancia uma referência à condessa D. Violante. (Diga-se de passagem que neste tempo ainda lhes não tinha sido dado o titulo. Só depois da renúncia do irmão mais velho, Ignacio de Noronha, o braguilha, é que João III, em 1556, declarou 2.º conde de Linhares o seu antigo embaixador na corte de França). É porém hoje
convicção minha: a) que a egloga se refere a uma pessoa só; b) que essa pessoa era um prelado. Relêam-se as três estancias e repare-se nas qualidades que o poeta atribui ao senhor famoso e excellente. Sobre o assunto já a D. Carolina Michaelis escreveu em nota a Storck, Vida de Camões: A engenhosa interpretação de Storck será mais plausível para os que lerem a bella versão germânica, do que para os portugueses que recorrem ao original, porque, emquanto aquella já vem esclarecida, está este mal ponctuado e bastante obscuro. Os versos 11 e 12, por exemplo (em cuja companhia a santa piedade sempre andasse) e principalmente o 20 (dos sobrehumanos um em toda a parte) ficam, ainda assim, um pouco enygmaticos, para mim pelo menos. Quem seria esse prelado? Presumo que é o ditoso Pinheiro do soneto 190, isto é, talvez o barcelense Rodrigo Pinheiro, que era bispo de Angra desde 1548 e esteve à frente da diocese do Porto desde 1552 até 1572. (Sobre a importância que na corte possuia este prelado, que era governador da casa do civel na occasião em que foi escripta a égloga, veja-se, por exemplo, Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, III). Em António Pinheiro, bispo de Miranda e depois de Leiria e ao tempo mestre do malogrado príncipe herdeiro João, é escusado pensar, me parece, pois esse só foi elevado à dignidade episcopal no reinado de Sebastião, quando Julião d’Alva deixou o bispado de Miranda em 1565. Segundo alguns camonistas, o soneto 190 refere-se a Gonçalo Pinheiro, então bispo de Tanger e desembargador do paço.

Cantando por um valle docemente
Desciam dous pastores, quando Phebo
No reino Neptunino se escondia.
De idade cada qual era mancebo,
Mas velho no cuidado, e descontente
Do que lhe elle causava parecia.
O que cada um dizia,
Lamentando seu mal, seu duro fado,
Não sou eu tão ousado,
Que o pretenda cantar sem vossa ajuda;
Porque, se a minha ruda
Frauta deste favor vosso for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.

NOTA: Esta egloga, segundo creio, é dirigida a D. Francisca de Aragão, a tão formosa, como ajuizada dama da rainha D. Catharina. Dela diz J. Priebsch (Poesias inéditas de Caminha, Halle, 1898): Raras vezes uma dama da corte portuguesa foi alvo de tantas e tão enthusiasticas manifestações de admiração... Os poetas mais ilustres do seu tempo tributaram-lhe homenagem, cantando o esplendor da sua belleza e lamentando a altivez do seu desdém. Namorador incorrigível, Camões, ao voltar do Oriente, enfileirou também entre os apaixonados adoradores da que annos depois era nora de Francisco de Borja. Leia-se, por exemplo, o soneto 268: Este amor que vos tenho, limpo e puro, De pensamento vil nunca tocado, Em minha tenra idade começado, Tê-lo dentro nesta alma só procuro./ De haver nelle mudança estou seguro, Sem temer nenhum caso ou duro fado, Nem o supremo bem ou baixo estado, Nem o tempo presente nem futuro./ A bonina e a flor asinha passa; Tudo por terra o inverno e estio deita; Só para meu amor é sempre maio./ Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa, E que essa ingratidão tudo me enjeita, Traz este meu amor sempre em desmaio. Já agora também o soneto de despedida, quando a formosa senhora, em seguida ao seu casamento, acompanhou o marido para a corte do imperador Rodolpho II: Ai imiga cruel! Que apartamento É este que fazeis da pátria terra? Ai! Quem do amado ninho vos desterra, Gloria dos olhos, bem do pensamento?/ Is tentar da fortuna o movimento E dos ventos cruéis a dura guerra? Ver brenhas d’ondas? feito o mar em serra, Levantado de um vento e de outro vento?/ Mas já que vos partis, sem vos partirdes, Parta comvosco o ceu tanta ventura, Que se avantaje áquella que esperardes./ E só desta verdade ide segura, Que fazeis mais saudades com vos irdes, Do que levais desejos por chegardes. A futura condessa de Ficalho, que ia ser mãe de mais de um vice-rei espanhol, partia-se, sem se partir, sem deixar uma parcela do coração ao seu desconsolado adorador.

Nada conseguiram também as senhoras que se prestaram a ser intermediárias, terceiras, no assunto, e às quais o poeta se dirige nestas redondilhas:

Pois a tantas perdições,
Senhoras, quereis dar vida,
Ditosa seja a ferida,
Que tem tais cirurgiões».

In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/Universidade de Coimbra/JDACT