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A Profecia. D. Teresa e o rei
Afonso Henriques
«(…) Quatro anos depois, por acção de João Peculiar, antigo monge de
Santa Cruz promovido agora a arcebispo de Braga, Afonso Henriques voltaria
a Zamora, desta vez para assinar o tratado onde Afonso VII reconhecia,
definitivamente, a independência portuguesa, mesmo que a confirmação do Papa
ainda fosse demorar décadas a chegar. Em 1147,
um ano depois de ter casado, por fim, com Mafalda de Sabóia, o rei
conquista Lisboa com o apoio de cruzados a caminho de Jerusalém. A bandeira que
dá a Portugal, a primeira, é uma simples cruz azul sobre fundo branco. Reina a
partir de Coimbra, próximo dos monges crúzios que rezam por ele. Teotónio
baptiza-lhe Sancho, o filho que lhe
há-de suceder, um dia, no trono. O mesmo Teotónio, por alegada
intervenção miraculosa, salva Dona
Mafalda dum parto que a ameaçava levar do mundo dos vivos (o episódio permanece retratado em quadro no
altar de Santa Cruz). No entanto, a rainha virá a morrer na sequência de novas
complicações de parto, em 1157. Em 1162, chegará a hora do próprio Teotónio,
depois de uma longa vida de 80 anos e muitas lutas, de Coimbra a Jerusalém. No
ano seguinte, o próprio Afonso Henriques dirigirá o
processo que conduzirá à canonização do amigo, transformado assim no primeiro
santo realmente português.
No entanto, passados muitos séculos, há quem levante, nos dias de hoje,
a estranha hipótese de ter sido Teotónio e não o pretenso Martim
Suleima o infame Bispo Negro. A
teoria baseia-se na improbabilidade de um Papa atribuir, naquele tempo, tão
importante missão a um negro ou muçulmano convertido ao cristianismo. O bispo não seria, pois, negro por causa da cor da pele, mas do
hábito. E, com efeito, os hábitos dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz, como
Teotónio, eram pretos… Por agora, o que importa é a figura deste rei irremediavelmente
só. Sem pai nem mãe, nem muitos dos irmãos, nem mulher, nem mentor espiritual, Afonso
Henriques prossegue na sanha de expandir o reino. Não se sabe se terá
despertado, alguma noite, assaltado pelos velhos fantasmas da lendária
maldição materna, mas, das nuvens de medos antigos, o povo veria irromper
um dia a confirmação da profecia... Tinha passado muito tempo. Afonso
Henriques tinha já 60 anos e mais do que duplicado o território que herdara
do pai. Nunca havia sofrido uma derrota, até ali... Apesar da idade e de todas
as cicatrizes, continuava a liderar com sucesso o exército português no campo
de batalha.
Mas, daquela vez, em Badajoz, não contou com o poder nem com a
estratégia de Fernando II, rei de Leão e da Galiza, nem que este tivesse um
pacto com o governador da cidade. Apanhado numa cilada, Afonso Henriques é
cercado entre o castelo e a orla, entre mouros e leoneses. Pior: ficava nas mãos de Fernando, filho de Afonso VII e,
portanto, seu primo em segundo grau, educado em jovem por Fernão Peres de Trava,
velho amante de sua mãe, e marido da sua filha Dona Urraca e, portanto, seu genro…
Percebendo que não tinha como dar luta a duas frentes de batalha, o rei
português tenta fugir a galope, mas, ao
passar as portas da cidade, embate com a coxa no pesado cabo de um ferrolho,
mal colhido ao abrir, e cai violentamente ao chão. A perna, quebrada logo no
momento do choque, é depois desfeita quando o cavalo, de igual modo ferido,
tomba sobre ela. Incapaz de se levantar, nem com a ajuda dos seus, Afonso consegue erguer-se, e o
inevitável acontece: o herói de São Mamede e Ourique e Santiago e
Lisboa e tantas outras batalhas era agora prisioneiro de guerra. Passados
dois meses de negociações que envolveram o pagamento de um resgate e a
devolução de cidades conquistadas a Leão, o rei foi, enfim, libertado. Mas, a
título pessoal, consta que Fernando II até tratou bem o sogro durante o
cativeiro, chamando os melhores médicos do reino para o tratar. O povo, porém,
nunca mais esqueceria as supostas palavras de Dona Teresa, lançadas sobre o
filho trinta anos antes: A Deus peço
que preso sejais vós, assim como eu me vejo agora. E porque puseste ferros em
minhas pernas, que vos ajudaram a trazer e a criar com muitas dores do meu
ventre e fora dele, com ferros sejam as vossas pernas quebradas. A
verdade é que Afonso Henriques nunca mais voltaria ao teatro de combate.
Ainda viveria muitos anos no trono e em plena actividade governativa, mas o
tempo dos tambores de guerra havia passado definitivamente para ele. Talvez por
aqueles dias tenha pensado pela primeira vez que não seria rei para sempre. O
reino que criara ia sobreviver-lhe, era altura de começar a preparar um
sucessor. E Afonso viveu o
suficiente para ver o Papa reconhecer, por fim, o Reino de Portugal. A confirmação só chegou em 1179 e depois de muito dinheiro posto em Roma. A 6 de Dezembro de 1185, o rei morreu, depois de pelo
menos 76 anos de vida, 46 dos quais passados no trono. Depois dele,
viriam mais 34 reis, mas nenhum governaria mais tempo. Entre o dia em que
nasceu e o último estertor, levou Portugal do Mondego até às primeiras milhas
dos Algarves. O seu corpo repousa em Coimbra, no Mosteiro de Sant a Cruz, perto
da mulher, Dona Mafalda, do filho que lhe sucedeu, Sancho, e do amigo e confessor, São Teotónio.
Muitos séculos depois, durante o reinado de Manuel I e em plena época
dos Descobrimentos, uma proposta de canonização de Afonso Henriques seria
apresentada à Santa Sé, mas o processo não chegou a bom porto. Dificilmente
poderemos culpá-la de velhos traumas em torno de hipotéticos ataques a bispos e
cardeais... Com efeito, é tão pouco provável que Afonso fosse santo, como um brutamontes que teria batido na própria
mãe. A verdade repousará algures entre uma lenda e outra... Já no século XXI,
uma equipa de investigadores propôs abrir o túmulo do Fundador e estudar-lhe o corpo. A ciência poderia ter revelado
dados novos e surpreendentes sobre quem foi, afinal, o primeiro rei português. A proposta foi recusada. Ainda
bem. Não se fosse descobrir que Afonso Henriques era afinal um
baixote, de ossos imaculados sem marcas da guerra, incapaz de erguer um punhal,
quanto mais a sua lendária espada. Países com mais de 800 anos foram fundados
por reis gigantes que venciam batalhas sozinhos, cuspiam fogo e não temiam
deuses nem maldições. Mesmo que nunca tenham existido». In Alexandre Borges, Histórias
Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, Lisboa, 2012, ISBN
978-972-46-2131-9.
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