Ciência e Religião. Natureza
e Símbolo
«(…) Imanência e transcendência, presença e ausência, proximidade e
distância, tomadas compatíveis pelo conceito de participação, é nessa dialéctica que o poder do espírito se
amplia, abolindo os limites do fragmentário. Quando as criaturas se transformam
em símbolos anulam, em certo sentido, os seus limites concretos, deixam de ser
um mero fragmento isolado, encamando em si, a despeito da sua fragilidade
ontológica e da sua consequente precaridade, todo o sistema em questão. Assim,
a natureza, para o cristianismo e no período que vamos considerar, sem ser
divina, apresenta uma valência supranatural que dela se não pode dissociar de
forma radical e estanque. É tambem neste sentido, como dissemos, que o símbolo
exige uma interpretação, transformando o universo em linguagem, encarado à luz da metáfora do livro. Trata-se de uma metáfora que não
é, obviamente, inócua, pois, para além daquele plano que acabámos de referir,
estabelece uma relação estreita entre este e um outro livro: o mesmo que, como escreveu H. Marrou, a propósito de Sto. Agostinho,
constitui a base da cultura cristã.
No livro que é a Bíblia,
como no grande livro do mundo, o
esforço de interpretação que aí se exige põe em marcha, desde o início, um
processo simbólico, na medida em que existe algo fora dele que nos diz ou indica
que este deve ser considerado como ponto
de partida permitindo-nos aceder a um sentido segundo. Esse algo reside
não no conceito de Criação, como sucede no caso do grande livro do mundo, mas no seu carácter inspirado, que nos
conduz ao próprio horizonte da doutrina cristã. Sem infirmar o sentido literal, a interpretação nasce,
não necessária mas frequentemente, como diz Todorov, da distância entre esses
dois sentidos: [...] ela é apenas o
percurso que, por meio de uma série de sucessivas equivalências, nos permite
voltar a ligar e, logo, identificar, um com o outro. O índice que desencadeia a
interpretação não se encontra, portanto, no próprio texto, mas na sua
confrontação incessante com outro texto (a doutrina cristã) e na diferença
possível entre os dois.
De facto, se há princípio bem estabelecido nos procedimentos
fundamentais da hermenêutica inerente ao cristinanismo, ela emerge da conhecida
expressão de S. Paulo segundo a qual a
letra mata e o espírito vivifica. Nesse sentido, julgamos, com Todorov,
que o cristianismo apresenta uma necessidade constitutiva de um nível simbolico
de interpretação. Assim, não espanta que o tema do liber experientiae, do livro do mundo, do liber scriptus intus et foris, se apresente como uma
constante no pensamento cristão, de expressão tão evidente num Escoto Eriúgena
ou num Sibiuda. Por esta razão, o problema que aqui se aborda, relativo aos
fundamentos do significado religioso do Universo e sua harmonização com a
interpretação científica da natureza, não nos vai conduzir ao drama
contrastante entre dois modos de conhecimento que se considerassem como
opostos: um dependente das exigências epistemológicas e metodológicas da razão
científica, pondo em prática uma tecnicidade crescente de meios de verificação,
ao qual se associariam temas como os do progresso ou da independência critica e
outro que uma tradição já secular nos acostumou a considerar como algo que
sobra do seu modo de verdade, uma herança superada de mitos antigos, finalmente
desmontados e compreendidos pela razão. Evidentemente que entre aqueles dois
domínios se estabeleceram importantes zonas de fricção, resultantes de factores
vários. Mas não deixa de ser verdade que a revolução científica e a
correspondente consideração da natureza à luz de pressupostos mecanicistas não
anulou, por si só, a prevalência de valores culturais, ligados a uma reflexão
intensa acerca da relação entre Deus e as criaturas, entÍe o Absoluto e o Mundo».
In
Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos
Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994,
ISBN 972-27-0700-0.
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