NOTA: Conforme o original
Causas do Romantismo.
Erudição medieval dos
historiadores modernos
«(…) Apesar da immensa elaboração económica e scientifica, o século XIX
distingue-se principalmente pelo génio histórico: a renovação intellectual
partiu da abstraçao metaphysica para a critica, das hypotheses gratuitas para a
sciencia das origens, do purismo rhetorico para a philologia, oppoz aos
designios providenciaes o individualismo, deu ás sciencias académicas, que
serviam para alardear erudição, um intuito serio indagando nos factos mais accidentaes
os esforços do homem na sua aspiração para a liberdade; só em um periodo assim
positivo é que se podia achar a unidade de tamanha renovação; essa unidade é a
Historia. Quebraram-se as velhas divisões da
historia sagrada e profana, de historia antiga e moderna; todas as
creações do homem, por mais fortuitas merecem hoje que sejam estudadas nos
documentos que restam; as instituições sociaes, as industrias, os dogmas, o
direito, as línguas, as invasões, as obras inspiradas pelo sentimento, os
costumes, superstições, são objecto de outras tantas sciencias, separadas por
methodo para melhor exame, mas comparadas e unidas, em um único fim, a sciencia do homem. Em todas
estas creações da actividade humana, o fatalismo supplanta nos períodos
primitivos a liberdade, o sentimento suppre a falta do desenvolvimento da
rasão, a auctoridade impõe-se á consciência e á responsabilidade moral, emfim a
paixão não deixa ao homem a posse plena de si mesmo, o acto praticado revela quasi
sempre ura paciente em vez de um órgão activo. A historia religiosa ou
politica, a historia das invenções, a historia da linguagem, mostram-nos o
homem n'este estado secundario, n'esta dependência de espirito; terror sagrado e
auctoridade, acaso, e formação anonyma provocada pela necessidade de uma
communicação immediata, são moveis violentos que arrastam o homem em vez de
serem exercidos e dirigidos pela sua liberdade. Nas condições sentimentais em
que entra já um elemento de rasão não acontece assim: as creações artisticas
não são provocadas pelo interesse, não têm um fim calculado, não se impõem
dogmaticamente, não se exigem, nem são fatalmente necessárias. Isto prova o seu
grande valor, a sua proximidade dos resultados finaes d'esta grande e unitária
sciencia do homem.
É por isso que no século
que soube conceber a filosofia da historia, que soube deduzir da discordância
das religiões e das linguas, das raças e dos climas uma harmonia superior, a
tendência para a perfectibilidade indefinida do homem, só a esse século
competia lançar as bases positivas da historia
das litteraturas. Dá-se aqui uma coincidência que explica este facto; o
primeiro que formulou o principio, o homem é obra de si mesmo, que, na Scienza
Nuova achou uma lei racional da vida collectiva do homem sobre a terra,
esse mesmo, o inaugurador da philosophia da historia, Vico, propoz do
modo mais racional as bases da critica homérica e a verdadeira theoria da
evolução do teatro grego. N'estes dois processos estavam implicitos os modos como
a moderna historia procede no exame das litteraturas.
Foi também Schlegel, o que primeiro fez sentir a unidade das linguas
indo-europêas, o mesmo que determinou a lei orgânica que dirigiu a elaboração
das Litteraturas novo-latinas. Repetimos, a historia das litteraturas é uma
creação moderna; quando Aristóteles ou Quintiliano observaram o modo de
revelar os sentimentos nas obras da litteratura grega, achavam n'ellas, é
verdade, um produto vivo, mas não procuravam a espontaneidade da naturesa, procuravam
o canon rhetorico dentro do qual ella devia ficar restricta todas as vezes que
precisasse exprimir sentimentos análogos. Eusthato e Donato, estudando Homero
ou Virgilio, não iam mais longe do que a colligir as tradições da escola
que bordaram a vida dos poetas, separados da sua obra e peior ainda da sua
nacionalidade. Os trabalhos de Struvio e Fabricio reduziram-se a vastas
indagações bibliographicas dos monumentos que restavam da antiguidade. Os
jurisconsultos da escola cujaciana, animados com o espirito critico da
Renascença, tiveram por isso mesmo um vislumbre mais verdadeiro do que viria a
ser a historia das litteraturas; elles foram ás obras litterarias do teatro romano,
ás satyras de Juvenal e Horácio procurar a colisão dos interesses
sociaes para recompôrem o sentido dos fragmentos das leis que se haviam perdido
n'esta renovação da Europa chamada os tempos modernos». In Teófilo Braga, História do
Romantismo em Portugal, Ideia geral do Romantismo, Garrett, Herculano,
Castilho, Nova Livraria Internacional, Imprensa Sousa Neves, Lisboa, 1880.
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