Reivindicação da poesia
«Escrever poesia, como editar poesia, como sobretudo ler poesia, é um
acto de amor louco, gratuito e perdulário em tempos como estes, de prosa e de
literatura de negócios. Poucas dezenas de exemplares que os prelos, nos
intervalos das facturas, dos cartões de visita e dos romances de Lobo Antunes,
dão à estampa são lidos quase clandestinamente, no segredo dos quartos, por seres
fugidios e perversos, e recolhidos depois no fundo de gavetas intemporais da
maledicência dos colegas do escritório e dos assinantes das selecções. Ou são lentamente folheados
nos cafés, às horas mortas em que os vendedores já voltaram às ruas e os empregados
bancários aos balcões, por aristocratas pálidos e decadentes e por vagos
estudantes de Letras.
Ao todo, e descontados os que os leem por obrigação, em penosas
autópsias nas aulas de Linguística, não serão mais de duzentos ou trezentos os
leitores de livros de poesia, e outros tantos (tudo fica, pois, entre nós, entre nós, não é, O'Neill?) os
que inconfessadamente escrevem poesia. Todavia, o número dos que invocam o nome
dos poetas em vão, nos discursos ou nas Prosas, ou se organizam em bandos
comemorativos a propósito disto ou daquilo, é imensamente superior,
constituindo provavelmente a bancada mais ruidosa de toda a troupe cultural. De facto, não há
político hoje que não leve Pessoa na lapela quando vai a discursos, nem
jornalista que não tenha de cabeça, que não de coração, uma ou duas frases da Mensagem
Para ilustrar os leads. A palavra cultura, enche as bocas (e é de crer
que algumas bolsas também) e suspeita-se por esses lados que poesia, o que
quer que isso seja, tenha algo a ver com cultura.
Assim, é indispensável a quem leve amigos ou clientes a casa ter uma edição de
versos na estante, ao lado dos livros de Irving Wallace e das prosas de Joaquim
Letria. Os mais exquis talvez possuam
alguma encadernação dos Rabbayat ou da Comédia, os mais desembaraçados
ficar-se-ão pelos Sonetos de Camões em
percalina e dourados. De qualquer modo, a qualidade de um homme du monde vê-se hoje tanto pela estante como pela marca
de colónia a que fede, e um ou dois livros de poesia ficam bem na estante de uma
pessoa de sucesso.
Tudo o que não parece, porém, impedir que alguns editores associais
continuem a orgulhar-se de vender os seus livros de poesia a poucas dezenas de
eleitos. Com efeito, um dos principais problemas dos poetas, nestes dias, em
Portugal, além de o de resistir à tentação de escrever um romance, é o de
conseguir manter a sua obra ao recato da chamada crítica e dos concursos do
Círculo de Leitores. E um risco indiscutível que uma obra corre, sobretudo se tiver
a infelicidade de sair da igreja dos iniciados, é o de começar a ser invocada
pelos políticos Para ornamentar as conferências de Imprensa e a servir de slogan à publicidade das cervejas ou dos
aldeamentos de férias do Algarve. Seria realmente desastroso se, por exemplo,
Helder Moura Pereira fosse publicado nos livros de Bolso da Europa-América
ou se o Álvaro Manuel Machado se pusesse a dizer bem na TV, atrás do copo dos
cachimbos, dos poemas de António José Forte ou a recomendar Silvia Plath ou
Joaquim Manuel Magalhães aos pais de família. Se o escândalo da poesia se
tornasse também best-seller, as
últimas almas privadas teriam que inventar outro continente interior para onde
emigrar e fugir aos turistas. Perdemos Fernando
Pessoa irremediavelmente; conseguimos salvar Mário Sá-Carneiro, Camilo
Pessanha e Cesário, e o próprio arquipélago pessoano tem ainda recantos e
alturas onde só se pode chegar armado de um amor proibido aos publicitários e
aos donos dos partidos.
Porque o amor, contrariamente à pornografia, tem horror às partouzes e às multidões. Nos grandes
rituais colectivos de poesia, como os dirigidos por Ginsberg nos anos 60, milhares
de fiéis comungavam da festa transgressiva da palavra com o poeta celebrante;
hoje só ficaram os turistas espiando o espectáculo das galerias, com a mórbida
curiosidade de quem observa algo que não sente nem compreende, ou exibindo a
poesia como adorno das mais prosaicas intenções, como os crucifixos de ouro sem
fé sobre os pêlos do peito e por entre as camisas desgoladas dos gigolos, da Fórmula Um. Expulsos pela
horda dos comemorativos de uma boa parte da obra pessoana, os leitores de poesia
refugiam-se, como uma espécie em extinção, nas ruínas de Ricardo Reis e nas
ortonímias que o estômago da turba não consegue, apesar de todos os esforços, digerir
com a mesma facilidade com que consumiu as famigeradas cartas de amor. E é com uma resignação dolorosa que vêem por aí a Chuva
Oblíquo à mercê dos copywriters e
dos advogados, como se lhes não bastassem as vulgarizações histriónicas dos declamadores
da TV e os exercícios estruturalistas de anatomia descritiva dos suplementos
literários...» In Manuel António Pina, JN, 19 de Março de 1988.
In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia,
1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN
978-972-37-1684-9.
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