quinta-feira, 20 de março de 2014

A Velha Casa. Vidas são Vidas. José Régio. «Parem, parem… seus palhaços da velha casa. Basta! Actual, na proposição de questões de hoje. Viva, na força de cada cena, onde luzes e sombras prendem as imagens fugidias. Rica, na diversidade dos problemas abordados»

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Vidas são Vidas
«(…) Como quem delira de febre numa noite de invernia, confundindo com a tempestade exterior os seus próprios delírios, um certo lapso de tempo lutara com horríveis miragens que se interpenetravam ou substituíam. Mas o túnel abria o boqueirão para campos lavrados, moitas verdes, jardins tranquilos, hortas solheiras. A noite aflitiva teria uma alvorada. Acaso poderia ser definitivo para ele, Pedro Sarapintado, ex-Chefe do Recreio dos Maiores do Colégio Familiar, aquele negrume que iá por de mais se arrastava? Perguntava-lhe a consciência se o não era para outros; se não nascem, vivem, morrem outros naquela escuridão e naquela imundície. Secretamente respondia Pedro (secretamente, porque teria medo e vergonha de o pensar alto) secretamente respondia Pedro que ele não era outros. Ainda, nessas revivescências da sua antiga imaginação optimista, voltava Pedro a crer na sua estrela, e sonhava magníficas desforras. Breve se lhe impunha a realidade; e então voltava ele à sua estúpida conformação desesperada. Pois quem era, afinal, para se julgar privilegiado, excepcional, quem ou o que era senão coisa bem pouca, bem pouca...? Por fim, a doença. Nas lotarias achara ainda o seu negócio mais seguro. Mudara de nome, e lá conseguira estabilizar-se um pouco nesse negócio. Era um mister em que, por vezes, podia expandir a sua natural inventiva de linguagem. Assim Pedro Sarapintado, Pedro da Conceição Martins Correia no bilhete de identidade, se transformara no André das Cautelas. E fora quando o abatera a doença longo tempo incubada. Já Pedro Sarapintado, ou André das Cautelas, definitivamente se estava convencendo de que a sua estrela era privilegiada mas no infortúnio. Porque, no fim de contas, não singravam tantos outros onde ele sempre encalhava? Qualquer secreto defeito nele havia, pelo qual toda a sua vida soava a rachado! Mas que fizera contra a Natureza, contra as Forças Ocultas, contra os Espíritos que jogam com os homens, contra Deus ou contra o Diabo, que assim era incompreensivelmente punido? Como se comportara noutras hipotéticas vidas, pois na actual nada fizera, nada fazia, que lhe parecesse merecer tal Perseguição? Não era simplesmente um homem imperfeito como todos, um indivíduo normal que aspirava a um pouco de felicidade?
No André das Cautelas doente ressurgia a imaginação de Pedro Sarapintado: mas agora com sinal contrário; agora devaneando sobre perseguições extraordinárias, como outrora devaneara sobre extraordinárias protecções. Até que devagar, subtilmente, por cansaço extremo, já todas as fantasias, ilusões, invenções, mitologias de Pedro Sarapintado o iam abandonando, as de sinal optimista como as de sinal pessimista, e ele ficava só e vazio, indiferente, pronto a morrer e suportando estupidamente aquele precoce fim de vida. Fora quando o procurara Lelito no seu triste refúgio. O André das Cautelas que primeiro encontrara, já era um homem doente e amargo; mas ainda em circulação. Agora, naquele catre, só assistido pela caridade impotente duns camaradas tão pobres como ele, não passava dum moribundo cuja agonia se arrasta. E fora quando o trouxera Lelito. Eis o que, muito fragmentariamente, confiara Pedro ao seu novo amigo. Sentindo-se convalescer, e protegido por verdadeiras dedicações, era como se, finalmente, estivesse acordando do tal pesadelo... A sua natural fantasia humorística reacendia-se, e até na evocação das suas terríveis provações Pedro a exercitava. Doutra maneira não seria escutado pelo velho médico, pois a idade o viera fazendo tão egoísta, ou comodista, que não suportava que o maçassem. Pedro divertia-o. Assim o conquistava sem dar por isso. Algumas vezes o chegava a comover, precisamente porque nunca o tentava. Ao médico Laje parecia aquilo uma prova de bom gosto, além duma subtil manifestação de pudor: contar misérias como anedotas; rir de si próprio infeliz como se julgasse não merecer outra coisa. Ora na amigável tolerância com que o ouvia o Dr. Laje, adivinhara Pedro um interesse mais fundo; como na espontaneidade com que se lhe confiava Pedro, procurando, ao mesmo tempo, entretê-lo, sentira o Dr. Laje uma particular simpatia. Certa recíproca gratidão, que tinha ainda outras razões, estreitara, pois, a crescente amizade entre o médico e o seu doente.
Na velha ti Pinheiro achara Pedro uma inclinação não menos espontânea, e, claro está, muito mais expansiva. Se alguém pudera duvidar da cura de Pedro, não fora, de certeza, a ti Pinheiro! Já isso testemunhava a sua simpatia por aquele estranho, quando, normalmente, escassa simpatia poderia inspirar qualquer estranho à ti Pinheiro. Velha, revelha, ainda com grande dificuldade podia a ti Pinheiro aceitar a simples ideia da morte daqueles a quem fora, ou era, afeiçoada. Sobretudo, por continuar ela viva! Quanto àquele rapazão de cabelos vermelhos, nem sequer chegava ti Pinheiro a crer que estivesse tísico! Sobre os tísicos, ou hécticos, lá tinha a sua imagem formada, com a qual não conseguia conciliar a de Pedro. Chupado e quebrado, sim, chegara ele, não havia dizer o contrário, decerto pelos trabalhos que passara. Agora descansaria; receberia trato bem diferente; e o Dr. Laje sabia muito, era muito entendido, toda a gente o dizia até fora de Azurara! Mas não estivesse com grandes apreensões e drogas, que o seu doente ainda teria forças para dar um bom pontapé à morte...» In José Régio, A Velha Casa, Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.

Cortesia de INCM/JDACT