Vidas são Vidas
«(…) Como quem delira de febre numa noite de invernia, confundindo com
a tempestade exterior os seus próprios delírios, um certo lapso de tempo lutara
com horríveis miragens que se interpenetravam ou substituíam. Mas o túnel abria
o boqueirão para campos lavrados, moitas verdes, jardins tranquilos, hortas solheiras.
A noite aflitiva teria uma alvorada. Acaso poderia ser definitivo para ele,
Pedro Sarapintado, ex-Chefe do Recreio dos Maiores do Colégio Familiar, aquele
negrume que iá por de mais se arrastava? Perguntava-lhe a consciência se o não
era para outros; se não nascem, vivem, morrem outros naquela escuridão e naquela
imundície. Secretamente respondia Pedro (secretamente, porque teria medo e
vergonha de o pensar alto) secretamente respondia Pedro que ele não era outros.
Ainda, nessas revivescências da sua antiga imaginação optimista, voltava Pedro
a crer na sua estrela, e sonhava magníficas desforras. Breve se lhe impunha a realidade;
e então voltava ele à sua estúpida conformação desesperada. Pois quem era,
afinal, para se julgar privilegiado, excepcional, quem ou o que era senão coisa
bem pouca, bem pouca...? Por fim, a doença. Nas lotarias achara ainda o seu
negócio mais seguro. Mudara de nome, e lá conseguira estabilizar-se um pouco
nesse negócio. Era um mister em que, por vezes, podia expandir a sua natural
inventiva de linguagem. Assim Pedro Sarapintado, Pedro da Conceição Martins
Correia no bilhete de identidade, se transformara no André das Cautelas. E fora
quando o abatera a doença longo tempo incubada. Já Pedro Sarapintado, ou André
das Cautelas, definitivamente se estava convencendo de que a sua estrela era
privilegiada mas no infortúnio. Porque, no fim de contas, não singravam tantos
outros onde ele sempre encalhava? Qualquer secreto defeito nele havia, pelo
qual toda a sua vida soava a rachado! Mas que fizera contra a Natureza, contra
as Forças Ocultas, contra os Espíritos que jogam com os homens, contra Deus ou
contra o Diabo, que assim era incompreensivelmente punido? Como se comportara
noutras hipotéticas vidas, pois na actual nada fizera, nada fazia, que lhe parecesse
merecer tal Perseguição? Não era simplesmente um homem imperfeito como todos,
um indivíduo normal que aspirava a um pouco de felicidade?
No André das Cautelas doente ressurgia a imaginação de Pedro
Sarapintado: mas agora com sinal contrário; agora devaneando sobre perseguições
extraordinárias, como outrora devaneara sobre extraordinárias protecções. Até
que devagar, subtilmente, por cansaço extremo, já todas as fantasias, ilusões,
invenções, mitologias de Pedro Sarapintado o iam abandonando, as de sinal
optimista como as de sinal pessimista, e ele ficava só e vazio, indiferente, pronto
a morrer e suportando estupidamente aquele precoce fim de vida. Fora quando o
procurara Lelito no seu triste refúgio. O André das Cautelas que primeiro
encontrara, já era um homem doente e amargo; mas ainda em circulação. Agora,
naquele catre, só assistido pela caridade impotente duns camaradas tão pobres
como ele, não passava dum moribundo cuja agonia se arrasta. E fora quando o
trouxera Lelito. Eis o que, muito fragmentariamente, confiara Pedro ao seu novo
amigo. Sentindo-se convalescer, e protegido por verdadeiras dedicações, era
como se, finalmente, estivesse acordando do tal pesadelo... A sua natural
fantasia humorística reacendia-se, e até na evocação das suas terríveis
provações Pedro a exercitava. Doutra maneira não seria escutado pelo velho
médico, pois a idade o viera fazendo tão egoísta, ou comodista, que não suportava
que o maçassem. Pedro divertia-o. Assim o conquistava sem dar por isso. Algumas
vezes o chegava a comover, precisamente porque nunca o tentava. Ao médico Laje
parecia aquilo uma prova de bom gosto, além duma subtil manifestação de pudor: contar
misérias como anedotas; rir de si próprio infeliz como se julgasse não merecer
outra coisa. Ora na amigável tolerância com que o ouvia o Dr. Laje, adivinhara
Pedro um interesse mais fundo; como na espontaneidade com que se lhe confiava
Pedro, procurando, ao mesmo tempo, entretê-lo, sentira o Dr. Laje uma particular
simpatia. Certa recíproca gratidão, que tinha ainda outras razões, estreitara,
pois, a crescente amizade entre o médico e o seu doente.
Na velha ti Pinheiro achara Pedro uma inclinação não menos espontânea,
e, claro está, muito mais expansiva. Se alguém pudera duvidar da cura de Pedro,
não fora, de certeza, a ti Pinheiro! Já isso testemunhava a sua simpatia por
aquele estranho, quando, normalmente, escassa simpatia poderia inspirar qualquer
estranho à ti Pinheiro. Velha, revelha, ainda com grande dificuldade podia a ti
Pinheiro aceitar a simples ideia da morte daqueles a quem fora, ou era,
afeiçoada. Sobretudo, por continuar ela viva! Quanto àquele rapazão de cabelos vermelhos, nem sequer
chegava ti Pinheiro a crer que estivesse tísico! Sobre os tísicos, ou hécticos,
lá tinha a sua imagem formada, com a qual não conseguia conciliar a de Pedro.
Chupado e quebrado, sim, chegara ele, não havia dizer o contrário, decerto
pelos trabalhos que passara. Agora descansaria; receberia trato bem diferente;
e o Dr. Laje sabia muito, era muito entendido, toda a gente o dizia até fora de
Azurara! Mas não estivesse com grandes apreensões e drogas, que o seu doente
ainda teria forças para dar um bom
pontapé à morte...» In José Régio, A Velha Casa, Vidas são
Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.
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