Um Testemunho Jurídico-Político na Corte Quinhentista Portuguesa
«Iniciado em 1521 e
caracterizado por momentos de esplendor jurídico e cultural, o reinado de João
III todavia cedo entraria na sua fase crepuscular. Não era apenas um rei, cujo
reinado se revelava agonizante, moribundo, tendo a seu lado permanentemente um
leito de morte, era um reino que sucessivamente se via órfão e que desesperado
procurava um sucessor. Ao descrever o período que antecede o desastre de
Alcácer Quibir, J.P. de Oliveira Martins define o reinado de
João III, a quem atribui o epíteto de faraó,
como um período onde a ambição deixara de existir, onde havia apenas a sombra da velhice, o cansaço depois da
grande obra, e as consequências dela. Em suma, o reino ávido do poder
de outrora, estava agora apático e facilmente se tornava uma presa fácil da
corrupção. É neste contexto e enquanto símbolo de uma corte elitista, receptiva
e conhecedora dos ideais do humanismo que surge a figura de António
Pinheiro. Humanista,
estadista, hábil na retórica e na eloquência, mestre de príncipes, capelão e
pregador régio, figura presente nos momentos cruciais da política portuguesa do
reinado de João III ao entrega do poder a Filipe II de Espanha, António
Pinheiro revelar-se-ia como profundo conhecedor e divulgador do ideário
político do século XVII capaz de enaltecer o Venturoso e o Piedoso,
mas também persuasivo o suficiente para justificar não só os anseios de um
jovem e inexperiente monarca como de fazer aceitar em Portugal o herdeiro de
Carlos V.
Integrado numa corte de
validos, de onde se destacam frei Diogo Sylva, Francisco de Portugal, frei Gaspar
Casal, António Ataíde, Pêro Alcáçova Carneiro e Miguel Silva, evidencia-se o
filho de Pedro Braz Couto e Leonor Alvares Pinheira, nascido supostamente em 1510, na localidade de Porto de Mós. O
neto paterno de Braz Annes Couto, e de Álvaro Fernandes Pinheiro, padroeiro da
capela de S. Sebastião na igreja de São Pedro da vila de Porto de Mós, cedo
revelaria uma total aptidão pelas letras o que leva João III a decidir enviá-lo
para o Colégio de Santa Bárbara, em Paris, onde é reitor Diogo Gouveia para aí
desenvolver os seus conhecimentos na área das ciências humanas. Tal foi a
ascensão do aprendiz que rapidamente se vê a comentar os textos de Quintiliano,
situação que não sendo do desconhecimento do monarca português vem a determinar
o regresso do humanista ao reino.
Não se conhece o momento
exacto do seu regresso, apenas se sabe que em 1541 já se encontra em Portugal, pois nesse ano dedica ao monarca,
a tradução do Panegírico de Plínio a
Trajano, a qual como ele próprio declara foi começada a 10 do dito mês.
O apreço que o rei lhe tem é notório sendo traduzido com a atribuição de
algumas funções, como a de mestre dos jovens fidalgos que então residiam na
corte, e em especial a de acompanhar o estudo do príncipe herdeiro, João. Tamanha graça régia, não voltaria
a ser-lhe concedida, facto que o deixará deveras inconformado. Capelão,
conselheiro e pregador de João III, ao lado de Simão Rodrigues, Fernando
Meneses Vasconcelos, António
torna-se mesmo um dos colaboradores mais próximos do monarca o que lhe permite
a presença e intervenção em alguns dos momentos mais determinantes não só da
política interna mas também externa neste reinado na medida em que acompanha já
a celebração de alguns tratados com a Santa Sé, num período em que os cismas se
sucedem.
Do mesmo modo, também por alguns autores, como Inocêncio José Silva, é indicado
ter António desempenhado as funções
de guarda mor do arquivo real, visitador e reformador da Universidade de Coimbra,
cujo ministério exercita no ano de 1565,
ainda que em relação às primeiras não existam dados conclusivos a esse respeito.
Aliás, tudo parece indicar que não terá desempenhado o cargo de guarda-mor,
pois numa carta que lhe é dirigida de Almeirim por D. Catarina, datada de 19 de
Março de 1569 esta pede-lhe notícias
do estado em que se achava a crónica de João III, e lhe promete as cópias
dos documentos do arquivo que lhe fossem necessárias, para a prossecução da
mesma. As funções que desempenha na corte não são apenas as de educador de
príncipes ou de tradutor de textos clássicos já que são reconhecidos os dotes
do exímio mestre na eloquência portuguesa, sendo intitulado o Cícero Português na
expressão de Manuel Faria Sousa, ou de Oráculo
daquela idade na classificação de Jorge Cardoso. A si se devem
algumas das orações de obediência enviadas ao Sumo Pontífice e a intervenção em
alguns dos momentos de maior melindre político verificados no reino como sucede
em 1562; ou ainda textos em que o
teor político acaba por se mesclar com uma redacção epistolar mais pessoal,
como ocorre com a prática consolatória que o Humanista dedica ao monarca em
virtude do falecimento da sua tão amada filha D. Maria, mulher do
príncipe D. Filipe de Espanha. No entanto é pela construção e divulgação do
pensamento político presente em alguns dos seus textos que ora o analisaremos».
In
Isabel Graes, D. António Pinheiro, Um Testemunho Jurídico-Político na Corte
Quinhentista Portuguesa, Faculdade de Direito da U. de Lisboa, Cuadernos de Historia del Derecho, nº 15, 2007-2008.
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