A Profecia. D. Teresa e o rei
Afonso Henriques
«(…) No governo do condado, com ou sem profecias maternas e ameaças
papais, Afonso daria seguimento a
missão de que ele próprio se investira sem sinal de receio ou remorso. Ia avançar
de batalha em batalha para ganhar territórios aos árabes e não perder os que já
tinha para Afonso VII. No entanto, sabia que, no plano espiritual, havia outra
guerra a travar: naquele tempo, nenhum reino era legítimo até ser reconhecido
pela Santa Sé. Era urgente começar a negociar com Roma a plena autonomia da
Igreja portucalense e, depois, o reconhecimento do reino. Se o rei maltratou de
facto bispos e cardeais, seria melhor não alimentar grandes esperanças, mas é
preferível acreditar noutra história, bem mais credível: aquela que nos diz
que, desde o princípio, Afonso Henriques
teve boa parte da Igreja do seu lado... Por aqueles dias, um grupo de clérigos
reformistas tomam a decisão de fundar em Coimbra um cenóbio de Cónegos
Regrantes de Santo Agostinho. Entre eles, contam-se figuras influentes como
Telo e João Peculiar, mas o primeiro líder da comunidade será Teotónio, o prior
que deixámos em Viseu, anos atrás, expulsando da Sé Dona Teresa e o homem com quem vivia mal casada. Teotónio gostava pouco de títulos e altos
cargos hierárquicos. Quando o convidaram para bispo de Viseu, fugiu para a Terra
Santa. Foi 1á duas vezes, percorrendo repetidamente os passos de Jesus Cristo e
descobrindo, enfim, o lugar onde tencionava viver até ao fim dos seus dias: ao
lado dos Cónegos Regulares do Santo Sepulcro, guardando o túmulo do
Messias ressuscitado. Contudo, Telo
não lhe permitiria cumprir com o plano. Convence-se de que é mais necessário
aqui do que em Jerusalém, para ajudar a fazer nascer um reino cristão. Teotónio
assume o priorado e, com a anuência de Afonso
Henriques, nasce o Mosteiro de Santa Cruz, o epicentro da aliança entre monges e guerreiros de que resultaria
Portugal.
Não se trata de uma associação de conveniência. Afonso é um homem genuinamente crente e os cónegos regrantes acreditam
verdadeiramente na mais alta legitimidade da tarefa que tinham a cumprir:
conseguir terras para a cristandade, converter infiéis, educar e reformar em
Deus. São as duas faces da mesma moeda: enquanto Afonso Henriques e os
seus homens se batem no campo de batalha, os monges rezam em Santa Cruz pela
vitória portuguesa no bom combate. O
próprio Afonso terá dito um dia que
as orações de Teotónio valiam mais do que a força do seu braço. O prior torna-se
seu amigo pessoal, conselheiro e confessor. Diz-se que é ele quem doma os
ímpetos mais cruéis do rei e que este lhe obedece sem contestação, chegando,
por ordem do padre, a libertar prisioneiros de guerra moçárabes e, portanto, cristãos.
Mais confiante do que nunca nas suas capacidades e acreditando ter Deus do seu
lado, Afonso prossegue em combate
contínuo. Em 1137, na batalha de
Cerneja, vence as tropas galego-leonesas e coloca um ponto final nas aspirações
do primo Afonso VII de submeter o Condado
Portucalense ao seu domínio imperial. Dois anos depois, em Ourique, diz-se que triunfa em
inferioridade numérica sobre cinco reis mouros num combate decisivo, após o
qual se passa a auto-intitular rei de Portugal. Mas este é de todos os
episódios o mais lendário. A data
atribuída à batalha, 25 de Julho, parece forjada para coincidir com o Dia de
Santiago, o Mata-Mouros. O lugar
onde aconteceu permanece um mistério, sabendo-se que há pelo menos três
Ouriques possíveis: um em Leiria, outro no Ribatejo e outro no Alentejo.
E, finalmente, o primeiro relato da alegada aparição de Jesus Cristo na
cruz, rodeado de anjos, garantindo a Afonso,
antes do combate, que venceria, surge apenas no século XIV, quando Portugal
voltaria a lutar pela independência diante de Castela, para convenientemente
caucionar a soberania nacional com um pretenso desígnio divino. Duma forma ou
doutra, e porque, uma vez mais, a lenda é muitas vez mais útil do que a
História, a batalha de Ourique ocuparia para sempre um lugar central na
mitologia portuguesa. E, até hoje, é recordada no coração da bandeira nacional, onde cinco escudetes representam os
reis mouros derrotados naquele dia de Julho, cada um deles brilhando com cinco
besantes, simbolizando as cinco chagas do Cristo crucificado que teria
encorajado o rei à vitória». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de
Reis Portugueses, Casa das Letras, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
Cortesia C. das Letras/JDACT