quarta-feira, 26 de março de 2014

A Profecia. Histórias Secretas de Reis Portugueses. Alexandre Borges. «’Teotónio’ assume o priorado e, com a anuência de Afonso Henriques, nasce o Mosteiro de Santa Cruz, o “epicentro da aliança entre monges e guerreiros de que resultaria Portugal”»

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A Profecia. D. Teresa e o rei Afonso Henriques
«(…) No governo do condado, com ou sem profecias maternas e ameaças papais, Afonso daria seguimento a missão de que ele próprio se investira sem sinal de receio ou remorso. Ia avançar de batalha em batalha para ganhar territórios aos árabes e não perder os que já tinha para Afonso VII. No entanto, sabia que, no plano espiritual, havia outra guerra a travar: naquele tempo, nenhum reino era legítimo até ser reconhecido pela Santa Sé. Era urgente começar a negociar com Roma a plena autonomia da Igreja portucalense e, depois, o reconhecimento do reino. Se o rei maltratou de facto bispos e cardeais, seria melhor não alimentar grandes esperanças, mas é preferível acreditar noutra história, bem mais credível: aquela que nos diz que, desde o princípio, Afonso Henriques teve boa parte da Igreja do seu lado... Por aqueles dias, um grupo de clérigos reformistas tomam a decisão de fundar em Coimbra um cenóbio de Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. Entre eles, contam-se figuras influentes como Telo e João Peculiar, mas o primeiro líder da comunidade será Teotónio, o prior que deixámos em Viseu, anos atrás, expulsando da Sé Dona Teresa e o homem com quem vivia mal casada. Teotónio gostava pouco de títulos e altos cargos hierárquicos. Quando o convidaram para bispo de Viseu, fugiu para a Terra Santa. Foi 1á duas vezes, percorrendo repetidamente os passos de Jesus Cristo e descobrindo, enfim, o lugar onde tencionava viver até ao fim dos seus dias: ao lado dos Cónegos Regulares do Santo Sepulcro, guardando o túmulo do Messias ressuscitado. Contudo, Telo não lhe permitiria cumprir com o plano. Convence-se de que é mais necessário aqui do que em Jerusalém, para ajudar a fazer nascer um reino cristão. Teotónio assume o priorado e, com a anuência de Afonso Henriques, nasce o Mosteiro de Santa Cruz, o epicentro da aliança entre monges e guerreiros de que resultaria Portugal.
Não se trata de uma associação de conveniência. Afonso é um homem genuinamente crente e os cónegos regrantes acreditam verdadeiramente na mais alta legitimidade da tarefa que tinham a cumprir: conseguir terras para a cristandade, converter infiéis, educar e reformar em Deus. São as duas faces da mesma moeda: enquanto Afonso Henriques e os seus homens se batem no campo de batalha, os monges rezam em Santa Cruz pela vitória portuguesa no bom combate. O próprio Afonso terá dito um dia que as orações de Teotónio valiam mais do que a força do seu braço. O prior torna-se seu amigo pessoal, conselheiro e confessor. Diz-se que é ele quem doma os ímpetos mais cruéis do rei e que este lhe obedece sem contestação, chegando, por ordem do padre, a libertar prisioneiros de guerra moçárabes e, portanto, cristãos. Mais confiante do que nunca nas suas capacidades e acreditando ter Deus do seu lado, Afonso prossegue em combate contínuo. Em 1137, na batalha de Cerneja, vence as tropas galego-leonesas e coloca um ponto final nas aspirações do primo Afonso VII de submeter o Condado Portucalense ao seu domínio imperial. Dois anos depois, em Ourique, diz-se que triunfa em inferioridade numérica sobre cinco reis mouros num combate decisivo, após o qual se passa a auto-intitular rei de Portugal. Mas este é de todos os episódios o mais lendário. A data atribuída à batalha, 25 de Julho, parece forjada para coincidir com o Dia de Santiago, o Mata-Mouros. O lugar onde aconteceu permanece um mistério, sabendo-se que há pelo menos três Ouriques possíveis: um em Leiria, outro no Ribatejo e outro no Alentejo.
E, finalmente, o primeiro relato da alegada aparição de Jesus Cristo na cruz, rodeado de anjos, garantindo a Afonso, antes do combate, que venceria, surge apenas no século XIV, quando Portugal voltaria a lutar pela independência diante de Castela, para convenientemente caucionar a soberania nacional com um pretenso desígnio divino. Duma forma ou doutra, e porque, uma vez mais, a lenda é muitas vez mais útil do que a História, a batalha de Ourique ocuparia para sempre um lugar central na mitologia portuguesa. E, até hoje, é recordada no coração da bandeira nacional, onde cinco escudetes representam os reis mouros derrotados naquele dia de Julho, cada um deles brilhando com cinco besantes, simbolizando as cinco chagas do Cristo crucificado que teria encorajado o rei à vitória». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia C. das Letras/JDACT