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«Então, o povo perguntou à criança quem era o seu pai, mas a criança,
sempre em latim, disse que se lembrava do rosto do homem que tinha estado em
cima da mãe no instante em que tinha sido concebido, mas que não poderia saber
como se chamava. Porquê?
Porque o que ele murmurava, nesse instante, ao ouvido da mãe, não era propriamente
o seu nome. Em suma, tudo o que a criança podia garantir é que o seu pai não
era São Brício. Ora, o povo, descontente com a resposta dada pelo recém-nascido,
continuava a querer apedrejar o bispo. Decidiram fazer um ordálio. O ferreiro
colocou brasas ardentes nas mãos de São Brício. A multidão pediu-lhe para levar
as brasas incandescentes até ao túmulo de São Martinho. São Brício atravessou o
Loire. A multidão seguia-o, gritando. Ora, depois de ele ter pousado as brasas
ardentes sobre o túmulo de São Martinho, as palmas das mãos que as tinham
levado estavam intactas. Então, a populaça voltou-se contra a mãe da criança;
desnudaram-lhe os seios e um jovem cortou-lhos por ser uma pecadora. Depois
disso, o corpo da mulher ficou coberto de sangue e de leite porque continuava a
amamentar o filho de um mês, e a freira foi apedrejada pela multidão, por ter
mentido.
A criança de um mês conhece a nudez e o rosto do progenitor, embora
ignore a sua identidade nominal. Assistiu, manifestamente inclinado para a
frente, à cena primitiva. Jacques de Voragine foi buscar esta história a São
Gregório de Tours.
A sétima história do XXXII rolo do Konjaku
poderia muito bem intitular-se Retrato vivo e silêncio absoluto. Um
dia, um caçador de quinze anos vai à caça com o seu falcão e é surpreendido por
uma tempestade na montanha. Vê-se sozinho com o seu moço de estrebaria no meio
da borrasca e dos relâmpagos. Um homem dá-lhe abrigo numa misteriosa casa de
cipreste. A filha do dono da casa, uma jovem de treze anos, dá-lhe de comer,
sempre ajoelhada, e, durante a noite, o caçador tem relações íntimas com ela. A
jovem não pronuncia uma palavra. De madrugada, ele levanta-se, dá-lhe a sua
espada de ferro, despede-se, vai-se embora, chama o moço e volta para o palácio
de seu pai. Passam cinco anos.
Não há dia em que o caçador não pense na jovem, mas o moço foi despedido
pelo pai ao regressarem da tormentosa caçada, e ele não sabe o caminho que o
levaria até ela. Depois de o pai morrer, o caçador manda procurar o antigo moço
de estrebaria. Voltam à montanha. Era o primeiro dia de Primavera. Encontram a
misteriosa casa de cipreste. O caçador volta a ver a jovem. Está ajoelhada,
mas, a seu lado, há uma menina de cinco anos, tão parecida com ele como duas
gotas de água. Todavia, ele não se reconhece nela, e chega mesmo a perguntar
quem é. O dono da casa ergue para ele os olhos e, em voz baixa, docemente, diz
que é a filha que ele teve da sua filha. Depois, o dono da casa retira-se e o
caçador fica com a criança e a jovem mãe; aproxima-se do leito; vê a espada de ferro
pousada ao lado da almofada de madeira. Sentado no leito, antes de satisfazer
no corpo da jovem o desejo que há tanto tempo sente, examina o rosto da menina:
é o retrato vivo de quem ele foi outrora. Por fim, deita-se; durante a noite,
volta a ter relações com a jovem mãe, e sente-se deliciado. A jovem continuou a
não descerrar os lábios. Na manhã seguinte, o caçador regressa à capital sem
nada dizer, e envia um carro de bois para a ir buscar. A partir desse dia, o
caçador nunca mais olhou para outra mulher. Mal a noite cai, à luz dos astros,
das candeias, ou dos relâmpagos, procuta na face da esposa, enquanto a possui,
todos os seus rostos, que vão nascer nos rostos dos filhos que ele expele com a
extremidade do seu pincel (penicillum).
Como é que o passado reconhece
o presente? Como é que o
presente reconhece o passado? Como
é que o reproduzido reconhece o reprodutor? Como é que a mulher reconhece o homem?
Ou, exprimindo-me num tom mais japonês: como é que o Agora se agita com a visitação, a
condensação, a capitalização do Outrora
no fundo de si mesmo? Ao
reconhecimento excessivo e impossível (do fecundante pelo fecundado)
oponho três formas de não reconhecimento: o
desconhecimento, o reconhecimento insuficiente ou difícil, o reconhecimento
excluído». In Pascal Quignard, Histoiresd’Amour du Temps Jadis, Editiones Philippe
Picquier, Arles, 1998, Histórias de Amor de Outros Tempos, Retratos Vivos,
tradução de Maria Vilar Figueiredo, Edições Cotovia, Lisboa, 2002, ISBN
972-795-043-4.
Cortesia de Cotovia/JDACT