Um reinado de terror criado pelos piratas. O cavalheirismo das armas
portuguesas
«(…) Por outro lado, a influência dos preconceitos nacionais, que tem
um poder tão arbitrário nos historiadores, em lado algum é tão predominante
como na China, especialmente em casos que envolvam estrangeiros. Seria absurdo,
por isso, esperar um relato imparcial sobre a origem de Macau redigido pelas
mãos dos xenófobos cronistas da China. Ao relatá-la, estavam naturalmente
influenciados quer pelos mutilados relatos oficiais quer pelo constrangimento,
originado pelo medo, de ferir a vaidade nacional ao atribuir a derrota dos
poderosos piratas à coragem estrangeira; e embora a brecha que a colónia fez no
exclusivismo do país tenha sido devidamente sancionada por um imperador de
ideias liberais, a descomedida presunção nacional não podia evidentemente
conciliar este facto com outro princípio que não fosse o de tornar o povo
ocidental tributário do Filho do Céu. Além disso, Macau é um local intimamente
associado à lenda de uma das mais veneradas divindades da China, a Tien
How ou Rainha do Céu, de cujo nome, A-Ma, derivou o nome da
própria colónia, originariamente chamada Povoação
do Nome de Deos do Porto de Amacao na China. Ao baptizar assim a colónia, os
seus marítimos fundadores não foram insensíveis ao romance marítimo da lenda, que,
em traços largos, é o que se segue: um
junco estava pronto para partir de um porto em Foquien quando apareceu uma
rapariga pedindo uma passagem que lhe foi negada, por estar o barco cheio de
passageiros e carga. As súplicas chorosas da rapariga, contudo, prevaleceram e,
por fim, o capitão destinou-lhe um canto na proa. Pouco depois de sair do porto
o junco foi apanhado por uma tempestade. Surgiu o pânico a bordo e,
desesperado, o capitão esforçava-se por arranjar à rapariga um lugar mais
seguro quando, da proa, uma voz argentina lhe pediu que não temesse e
continuasse a viagem. E ele assim fez: à mercê do vento e das ondas, o barco
navegou à deriva, até que ao dobrar um promontório, encontrou abrigo e ancorou
perto da costa, em Macau. Tendo a rapariga desaparecido, os passageiros buscaram-na
em terra e encontraram uma deusa, provavelmente o ídolo que ainda se pode ver
no Pagode de Ma Kok, que
mais tarde foi erigido em sua honra; e sobre uma rocha ali perto, ainda hoje
religiosamente conservada, esculpiram uma imagem do privilegiado junco com uma
faixa onde está registada a súplica de A-Ma ao capitão. Desde então o lugar tornou-se conhecido como Amagao e durante os tufões a
população marítima invoca a deusa, gritando o seu nome; anualmente, na
primavera, os peregrinos dirigiam-se ao pagode pitorescamente situado entre nichos
silvestres e escarpados, no sopé de uma pequena elevação, de onde se supõe que
a deusa tenha ascendido ao Céu. Ao confiar aos portugueses um lugar tão lendário
a China prestou-lhes uma homenagem que não podia ter sido senão altamente estimada
pelos navegadores que, em retribuição, ligaram o nome da deusa ao da colónia.
Porém, uma ainda maior homenagem foi prestada a um marinheiro
português: no Templo dos Quinhentos Génios,
em Cantão, uma efígie com feições nitidamente
europeias (aquela que querem agora fazer passar pela de Marco Polo) foi em tempos conhecida como a de um
marinheiro português naufragado na costa séculos antes, e durante muito tempo
aí residente cujas virtudes levaram a que fosse canonizado como um santo
budista. Mas, à semelhança da derrota de Chang Si Lao, também este facto é
considerado por alguns como provavelmente um puro mito. Contudo, a boina da efígie é exactamente a
de um marinheiro português dos tempos antigos, assim como o colarinho de folhas
é igual aos usados habitualmente no século XVI, provas bastantes de se não
tratar da época de Marco Polo. Para os portugueses e também para o mundo
das letras, Macau é famoso pela gruta onde Camões compôs o seu imortal poema
épico. Expulso pelo vice-rei da Índia em consequência de uma acutilante sátira
sobre Goa, o poeta-soldado embarcou dali para a China na frota enviada em 1556 sob o comando de Francisco Martins.
O visconde de Juromenha conjectura, inclusive, que do facto de a sua frota ter
estado estacionada em Lampacao em 1557
se deve inferir que o próprio Camões
terá dado uma mão no desbaratar da horda de piratas. Outra conjectura plausível
do visconde de Juromenha é, a de que no soneto CLXXXI (do qual o excerto que se
segue é apenas uma pobre tradução) Camões
se refere à romântica gruta em Macau, cujo ambiente é bastante semelhante à descrição
feita:
Onde acharei lugar tão apartado
e tão isento em tudo da ventura
que, não digo eu de humana criatura,
mas nem de feras seja frequentado?
Algum bosque medonho e carregado
ou selva solitária, triste e escura,
sem fonte clara ou plácida verdura,
enfim, lugar conforme a meu cuidado?
Porque ali, nas entranhas dos penedos,
em vida morto, sepultado em vida,
me queixe copiosa e livremente;
que, pois a minha pena é sem medida,
ali triste serei em dias ledos
e dias tristes me farão contente».
In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926,
Macau Histórico, Primeira Edição Portuguesa da versão Apreendida em 1926, 1990,
Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.
Cortesia da F. Oriente/JDACT