sexta-feira, 28 de março de 2014

Macau Histórico. Edição de 1926. Montalto de Jesus. «Porém, uma ainda maior homenagem foi prestada a um marinheiro português: no “Templo dos Quinhentos Génios”, em Cantão, uma efígie com feições nitidamente europeias foi em tempos conhecida como a de um marinheiro português naufragado na costa séculos antes, e durante muito tempo aí residente…»

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Um reinado de terror criado pelos piratas. O cavalheirismo das armas portuguesas
«(…) Por outro lado, a influência dos preconceitos nacionais, que tem um poder tão arbitrário nos historiadores, em lado algum é tão predominante como na China, especialmente em casos que envolvam estrangeiros. Seria absurdo, por isso, esperar um relato imparcial sobre a origem de Macau redigido pelas mãos dos xenófobos cronistas da China. Ao relatá-la, estavam naturalmente influenciados quer pelos mutilados relatos oficiais quer pelo constrangimento, originado pelo medo, de ferir a vaidade nacional ao atribuir a derrota dos poderosos piratas à coragem estrangeira; e embora a brecha que a colónia fez no exclusivismo do país tenha sido devidamente sancionada por um imperador de ideias liberais, a descomedida presunção nacional não podia evidentemente conciliar este facto com outro princípio que não fosse o de tornar o povo ocidental tributário do Filho do Céu. Além disso, Macau é um local intimamente associado à lenda de uma das mais veneradas divindades da China, a Tien How ou Rainha do Céu, de cujo nome, A-Ma, derivou o nome da própria colónia, originariamente chamada Povoação do Nome de Deos do Porto de Amacao na China. Ao baptizar assim a colónia, os seus marítimos fundadores não foram insensíveis ao romance marítimo da lenda, que, em traços largos, é o que se segue: um junco estava pronto para partir de um porto em Foquien quando apareceu uma rapariga pedindo uma passagem que lhe foi negada, por estar o barco cheio de passageiros e carga. As súplicas chorosas da rapariga, contudo, prevaleceram e, por fim, o capitão destinou-lhe um canto na proa. Pouco depois de sair do porto o junco foi apanhado por uma tempestade. Surgiu o pânico a bordo e, desesperado, o capitão esforçava-se por arranjar à rapariga um lugar mais seguro quando, da proa, uma voz argentina lhe pediu que não temesse e continuasse a viagem. E ele assim fez: à mercê do vento e das ondas, o barco navegou à deriva, até que ao dobrar um promontório, encontrou abrigo e ancorou perto da costa, em Macau. Tendo a rapariga desaparecido, os passageiros buscaram-na em terra e encontraram uma deusa, provavelmente o ídolo que ainda se pode ver no Pagode de Ma Kok, que mais tarde foi erigido em sua honra; e sobre uma rocha ali perto, ainda hoje religiosamente conservada, esculpiram uma imagem do privilegiado junco com uma faixa onde está registada a súplica de A-Ma ao capitão. Desde então o lugar tornou-se conhecido como Amagao e durante os tufões a população marítima invoca a deusa, gritando o seu nome; anualmente, na primavera, os peregrinos dirigiam-se ao pagode pitorescamente situado entre nichos silvestres e escarpados, no sopé de uma pequena elevação, de onde se supõe que a deusa tenha ascendido ao Céu. Ao confiar aos portugueses um lugar tão lendário a China prestou-lhes uma homenagem que não podia ter sido senão altamente estimada pelos navegadores que, em retribuição, ligaram o nome da deusa ao da colónia.
Porém, uma ainda maior homenagem foi prestada a um marinheiro português: no Templo dos Quinhentos Génios, em Cantão, uma efígie com feições nitidamente europeias (aquela que querem agora fazer passar pela de Marco Polo) foi em tempos conhecida como a de um marinheiro português naufragado na costa séculos antes, e durante muito tempo aí residente cujas virtudes levaram a que fosse canonizado como um santo budista. Mas, à semelhança da derrota de Chang Si Lao, também este facto é considerado por alguns como provavelmente um puro mito. Contudo, a boina da efígie é exactamente a de um marinheiro português dos tempos antigos, assim como o colarinho de folhas é igual aos usados habitualmente no século XVI, provas bastantes de se não tratar da época de Marco Polo. Para os portugueses e também para o mundo das letras, Macau é famoso pela gruta onde Camões compôs o seu imortal poema épico. Expulso pelo vice-rei da Índia em consequência de uma acutilante sátira sobre Goa, o poeta-soldado embarcou dali para a China na frota enviada em 1556 sob o comando de Francisco Martins. O visconde de Juromenha conjectura, inclusive, que do facto de a sua frota ter estado estacionada em Lampacao em 1557 se deve inferir que o próprio Camões terá dado uma mão no desbaratar da horda de piratas. Outra conjectura plausível do visconde de Juromenha é, a de que no soneto CLXXXI (do qual o excerto que se segue é apenas uma pobre tradução) Camões se refere à romântica gruta em Macau, cujo ambiente é bastante semelhante à descrição feita:

Onde acharei lugar tão apartado
e tão isento em tudo da ventura
que, não digo eu de humana criatura,
mas nem de feras seja frequentado?
Algum bosque medonho e carregado
ou selva solitária, triste e escura,
sem fonte clara ou plácida verdura,
enfim, lugar conforme a meu cuidado?
Porque ali, nas entranhas dos penedos,
em vida morto, sepultado em vida,
me queixe copiosa e livremente;
que, pois a minha pena é sem medida,
ali triste serei em dias ledos
e dias tristes me farão contente».

In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, Primeira Edição Portuguesa da versão Apreendida em 1926, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.

Cortesia da F. Oriente/JDACT