«(…) A cara que fez a dama ultrapassou os limites do estupor, mas
restaram-lhe forças para desabafar com a sua amiga mais próxima, e esta com a
sua vizinha, e, assim, a notícia deu imediatamente a volta ao salão, e chegou
até ao padre Villaescusa, chegou com a sua carga de horror e de clarividência;
o capuchinho compreendeu que, entre tanta gente, só ele tinha a razão do Senhor
repartida entre o coração e a cabeça, e só ele sabia como havia de agir. Não se
despiu: com paramentos e casula, permaneceu no altar e, ao descer dele, fez-se
preceder pela cruz e pelos ciriais; desta guisa deambulou por corredores e
galerias, de modo que, quando o Rei se aproximou dos aposentos da Rainha, com
intenção de entrar, ele estava lá. E quando o Rei estendeu a mão para o
puxador, a cruz atravessou-se-lhe diante da porta, em ângulo inclinado sobre o
eixo vertical, e nos olhos inflamados do padre Villaescusa pôde ler um veto
indiscutível. A sua mão largou o puxador, persignou-se e rodou sobre si
próprio. O Valido estava ali, e o Rei confiou-lhe: Quero ver a Rainha nua. E afastou-se com o mesmo rosto
pasmado, embora nas suas pupilas já brilhasse a esperança.
Lucrécia foi abrir a porta, alarmada pela força da campainhada; mas, ao
ver o criado Diego, desatou a rir. És
tu, peralvilho? Venho ver a tua ama, em segredo e com urgência. Marfisa
encontrava-se no banho, meio adormecida entre as carícias da água morna. A chegada
de Lucrécia acordou-a, e o recado da urgente visita do criado Diego pô-la
repentinamente em sobressalto, Porque os recados do Inquisidor-mor não costumavam
ser tão madrugadores. Será pelo calor que faz, e porque hoje é domingo.
Atira-me uma toalha que tape a selha, e que entre. Quando o criado do
Inquisidor-mor a viu, deplorou que até as pu…, incompreensivelmente, sentissem
pudor. Que te traz por cá? Perguntou-lhe
Marfisa, e ele respondeu-lhe: Uma única palavra: esconde-te. Fitaram-se.
Entenderam-se. Marfisa mal sussurrou: Está
bem. Vai-te embora. E o criado Diego fê-lo, sem se atrever a
bisbilhotar no que se ocultava por baixo da toalha, naquilo que, alarmada
Marfisa, já começava a emergir. Marfisa chamou Lucrécia. Depressa. Ajuda-me a vestir. Um fato de homem. E prepara o mais
indispensável numa trouxa leve. Antes que Lucrécia tivesse acorrido com
a roupa interior, já Marfisa, nua, embora enxuta, percorria o quarto e abria os
armários. Esse não, que é muito espalhafatoso. Este, castanho, que é de mais
discrição. Com a roupa interior não te preocupes: a mais grosseira que houver,
a de menos luxo. Vestiu-se sozinha, e ficou feita um garçon de cabeleira loura, com uma madeixa que lhe toldava os olhos
e os dissimulava. Marfisa experimentou dois chapéus: ficou com o que melhor a
cobria. Agora vou-me embora, e tu fechas e casa e vais ao mentidero, bem velada, que não te reconheçam, e informas-te do que
se conta, e publicas o que se passou ontem à noite nesta casa. Não a tua
história com o conde, que isso não interessa a ninguém, e dorme esta noite em
casa de uma amiga, ou de quem quiseres, mas afasta-te dos do Santo Ofício (maldito) que, se não me encontram à mão, podem
contentar-se contigo e submeter-te a tormento, para que digas onde me escondo. Como poderás dizê-lo, se não o sabes?
Por isso, como ainda que te torturem não poderás confessar, será melhor que não
te apanhem. Não deixes de ir à missa ao mosteiro de São Plácido, que eu cá me
arranjarei para te mandar notícias. À
missa das nove, hem? Que não te passe pela cabeça demorares-te na cama
com algum bonitão que te atraia ou com algum novo-rico que te pague. Eu, agora,
vou-me embora. E tu vai também, o mais depressa que puderes. Adeus.
Marfisa pegou na trouxa, enterrou o chapéu até esconder o rosto debaixo
da aba, e saiu. Fazendo um desvio, embora não muito longo, encaminhou-se para o
mosteiro de São Plácido. Cruzou-se com gente endomingada que falava dos
milagres daquele dia, e pôde saber, por alguém que o comentava aos gritos, que
Sua Majestade o Rei tinha expressado o desejo de ver a Rainha nua. Onde iremos parar? Se o Rei não
dá o exemplo, de quem havemos de o
receber? Ao chegar à portaria do mosteiro, pediu para falar com a
abadessar que no mundo tinha sido uma menina de La Cerda. Da parte de quem lhe digo que quer vê-la?
perguntou a porteira. Diga-lhe que da
parte de Marfisa. E receba, de
passagem, esta esmola para o cepo dos desamparados. Tilintou o ouro. A porteira
estendeu a mão ávida. Os seus passos ressoaram pelas lajes da portaria e
perderam-se em claustros e corredores. Marfisa sentou-se à espera. Fazia calor,
e tirou o chapéu para se abanar. Era bela, a cabeleira de Marfisa, e
vê-la assim, de garçon, teria feito pecar
muitos que reprimiam desejos inconfessáveis. Repetiram-se os passos, desta vez
duplos e em sentido contrário: uns soavam com autoridade; os outros, com
timidez. A porteira abriu uma portinha e rogou a Marfisa que entrasse. Atrás
dela, fechou a porta com duas voltas. A abadessa esperava-a, sorridente. Já sei que te apresentaste com uma esmola
esplêndida. - O produto de uma noite, que ofereço a Nossa Senhora dos
Desamparados. Que te traz por cá?
- Procuro refúgio contra os aguazis da Santa. Meteram-se contigo? Vão-se meter. Posso mandar a meu
primo, o Inquisidor-mor, recado para que te deixe em paz. E à sua
amabilidade que devo o aviso. Então?...
Uma freira mais, neste mosteiro, não chamará a atenção de ninguém. A abadessa
pegou-lhe na mão. Vem comigo.
É uma pena que tenhas que vestir o hábito, porque estás muito bonita. Mas posso
garantir-te que não te exigirei que cortes o cabelo, apenas que não te veja o
capelão, que é um tipo estranho». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del
Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não
demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da Caminho/JDACT