«Considerado como libreto de uma ópera que foi estreada num teatro de
Münster em Outubro de 1993, este quarto
texto teatral de Saramago teve o
prémio de teatro da APE de 1993. Tanto quanto sei, não recebeu da crítica a atenção
que merece, talvez por ser considerado apendicular de uma ópera (quando a ouviremos em Portugal?),
talvez pela sua fidelidade essencial ao real histórico, o que se verifica pela
cronologia sumária final dos acontecimentos de Münster, entre 1530
e 1536. Compõe-se de três actos, divididos em quadros, que dão
sobriamente a curva ascendente-descendente da tragédia, graças a um coro
dividido a exprimir a vox populi de católicos, luteranos, anabaptistas,
mulheres, etc., em comentário participado dos acontecimentos. Fica,
naturalmente, de fora qualquer alusão à linha dos levantamentos milenaristas,
que do século XI até ao século XVI percorre toda a cristandade (se não
quisermos recuar ao Evangelho de S. Mateus, ou às profecias bíblicas de Daniel
quanto ao Quinto Império, e não viermos até Luther King e à Teologia da
Libertação); trata-se tão-só da revolução anabaptista que teve o seu epicentro
em Münster e o seu herói em Jan van der Leiden (João de Leida),
rei dessa cidade, promovida a Nova Jerusalém da nova fé. Mas o mais
interessante, é nesse aglomerado de dez mil (e, na vaza-mar três mil)
habitantes, em que se vêm abrigar muitos fugitivos das cidades vizinhas, a seguir
a resenha da ideologia milenarista.
O que caracteriza o milenarismo, na óptica de um dos seus historiadores,
é ganhar a feição de seitas colectivas, com a esperança de realização terrena a
breve prazo do efectivo reinado de Cristo. Neste sentido foram milenaristas os
primeiros cristãos, que esperavam a segunda vinda de Cristo, o qual, segundo o Apocalipse
atribuído a João Evangelista (havia outros ainda, que a Igreja não consagrou),
governaria a Terra regenerada durante mil anos até à realização do Juízo Final,
numa sociedade comunitária, sem jerarquias sociais nem supremacias. A aceitação
do Império Romano, com a definição do Credo romano em Niceia, 325, acabou por transformar os ideais de
libertação civil numa libertação meramente pessoal assistida pela Igreja,
segundo um modelo depois explicitado por Santo Agostinho de Hipona e Santo
Ambrósio, bispo de Milão.
O milenarismo é um movimento que ressurge periodicamente entre as
camadas mais pobres, na pregação ou inspiração de letrados, quando grandes
transformações afectam as próprias camadas hegemónicas, como, por exemplo, as
cruzadas, o movimento urbano, as grandes pestes, a nova proletarização forçosa
do campo e da cidade, a Reforma
e outros fenómenos que põem a nu, e por vezes dão inesperadamente
oportunidades, às vítimas da discriminação estabelecida entre a massa servil e
a massa armada e privilegiada treinada para a condução da guerra. Daí a
irracionalidade das esperanças: a crença cega em pregadores e na preservação ou
ressurreição da vida de Carlos Magno, Godofredo de Bolhão, o rei Tafur, Balduíno
IX, Frederico I, Barbarrossa, etc. (O próprio Sebastianismo, no século XVII,
que importa o Novo Reino de Cristo, depois de vencido o Anticristo, em geral
identificado com a Igreja e os seus clérigos). A revolução de Münster, 1530-35,
tem um carácter urbano, no que contrasta com as jacqueries inglesas e
francesas de John Ball (Quando Adão
cavava e Eva fiava / Quem era então o cavalheiro?), e com a revolta dos
camponeses do centro da Alemanha e da Boémia, que terminou com a degolação de Tomás
de Müntzer (1525). A sua palavra de ordem, que lhes valeu o nome de anabaptistas,
é a exigência de um novo baptismo dos adultos, conscientes, visto que o
primeiro, já então feito na infância inconsciente, nada valeria. E a exigência
inicial parece dirigida contra os privilégios e direitos (mesmo de comerciar)
detidos pela aristocracia eclesiástica desse Estado diocesano, quando, sob a
condução de Rothmann e de Knipperdollinck, obtém revolucionariamente a maioria
do Conselho Municipal. É neste ponto
que a tragédia começa.
Ouve-se, ao escurecer uma voz recitante a dizer palavras do profeta
Daniel, num campo de cadáveres de uma batalha: Primeiro, a força do povo há-de
quebrar-se inteiramente. Então todas estas coisas se cumprirão. Como é
de regra nas tragédias, toda a acção é acompanhada por intervenções do Coro,
que participa da acção como personagem colectiva, dividindo-se, para corresponder
a católicos, protestantes (conservadores e avançados), anabaptistas, e a outros
grupos sociais, que por vezes representa, como por exemplo mulheres. O registo
das falas é solene, cheio de alegorias bíblicas (personagens e partes do corpo,
gado, instrumentos de uso profissional...), no encalço de questões religiosas
em debate: baptismo apadrinhado, ou cônscio e adulto; missa comungada
convencionalmente, ou em espécie (vinho, pão reais); uso do latim, ou da
linguagem vulgar; razão, ou loucura divina.
Logo de início o catolicismo predominante é levado de vencida por um vento novo [que] sopra nas terras baixas
da Holanda e de todo o Norte da Alemanha, são os muitos imigrantes que
varrem a maioria. O bispo recém-eleito, Waldeck, intervém a suster os seus
soldados e a reconhecer os direitos dos luteranos (segundo a Paz de Augsburgo
de Carlos V); quando se retira, os revolucionários anabaptistas triunfam no
Conselho da cidade, impõem o novo baptismo contra os católicos; e os luteranos
conservadores já contam com o assalto iminente das tropas episcopais». In
Óscar Lopes, A Busca de Sentido, In Nomine Dei, José Saramago, Editorial
Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3,
Cortesia de Caminho/JDACT