domingo, 23 de março de 2014

A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal. Pedro Calafate. «Mas não deixa de ser verdade que a revolução científica e a correspondente consideração da natureza à luz de pressupostos mecanicistas não anulou, por si só, a prevalência de valores culturais, ligados a uma reflexão intensa…»

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Ciência e Religião. Natureza e Símbolo
«(…) Imanência e transcendência, presença e ausência, proximidade e distância, tomadas compatíveis pelo conceito de participação, é nessa dialéctica que o poder do espírito se amplia, abolindo os limites do fragmentário. Quando as criaturas se transformam em símbolos anulam, em certo sentido, os seus limites concretos, deixam de ser um mero fragmento isolado, encamando em si, a despeito da sua fragilidade ontológica e da sua consequente precaridade, todo o sistema em questão. Assim, a natureza, para o cristianismo e no período que vamos considerar, sem ser divina, apresenta uma valência supranatural que dela se não pode dissociar de forma radical e estanque. É tambem neste sentido, como dissemos, que o símbolo exige uma interpretação, transformando o universo em linguagem, encarado à luz da metáfora do livro. Trata-se de uma metáfora que não é, obviamente, inócua, pois, para além daquele plano que acabámos de referir, estabelece uma relação estreita entre este e um outro livro: o mesmo que, como escreveu H. Marrou, a propósito de Sto. Agostinho, constitui a base da cultura cristã.
No livro que é a Bíblia, como no grande livro do mundo, o esforço de interpretação que aí se exige põe em marcha, desde o início, um processo simbólico, na medida em que existe algo fora dele que nos diz ou indica que este deve ser considerado como ponto de partida permitindo-nos aceder a um sentido segundo. Esse algo reside não no conceito de Criação, como sucede no caso do grande livro do mundo, mas no seu carácter inspirado, que nos conduz ao próprio horizonte da doutrina cristã. Sem infirmar o sentido literal, a interpretação nasce, não necessária mas frequentemente, como diz Todorov, da distância entre esses dois sentidos: [...] ela é apenas o percurso que, por meio de uma série de sucessivas equivalências, nos permite voltar a ligar e, logo, identificar, um com o outro. O índice que desencadeia a interpretação não se encontra, portanto, no próprio texto, mas na sua confrontação incessante com outro texto (a doutrina cristã) e na diferença possível entre os dois.
De facto, se há princípio bem estabelecido nos procedimentos fundamentais da hermenêutica inerente ao cristinanismo, ela emerge da conhecida expressão de S. Paulo segundo a qual a letra mata e o espírito vivifica. Nesse sentido, julgamos, com Todorov, que o cristianismo apresenta uma necessidade constitutiva de um nível simbolico de interpretação. Assim, não espanta que o tema do liber experientiae, do livro do mundo, do liber scriptus intus et foris, se apresente como uma constante no pensamento cristão, de expressão tão evidente num Escoto Eriúgena ou num Sibiuda. Por esta razão, o problema que aqui se aborda, relativo aos fundamentos do significado religioso do Universo e sua harmonização com a interpretação científica da natureza, não nos vai conduzir ao drama contrastante entre dois modos de conhecimento que se considerassem como opostos: um dependente das exigências epistemológicas e metodológicas da razão científica, pondo em prática uma tecnicidade crescente de meios de verificação, ao qual se associariam temas como os do progresso ou da independência critica e outro que uma tradição já secular nos acostumou a considerar como algo que sobra do seu modo de verdade, uma herança superada de mitos antigos, finalmente desmontados e compreendidos pela razão. Evidentemente que entre aqueles dois domínios se estabeleceram importantes zonas de fricção, resultantes de factores vários. Mas não deixa de ser verdade que a revolução científica e a correspondente consideração da natureza à luz de pressupostos mecanicistas não anulou, por si só, a prevalência de valores culturais, ligados a uma reflexão intensa acerca da relação entre Deus e as criaturas, entÍe o Absoluto e o Mundo». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.

Cortesia INCM/JDACT