Um reinado de terror criado pelos piratas. O cavalheirismo das armas
portuguesas
«(…) Ljungstedt ignora do mesmo modo a versão do historiador espanhol,
cujo trabalho aparece na lista de autoridades especialmente consultadas por ele,
fr. Juan de la Concepcion, que, ao relatar o feito de armas pelo qual os
portugueses ganharam Macau, frisa que o arrojado pirata invasor das Filipinas,
Li Ma Hong, era um sobrevivente das hordas de Chang Si Lao. Faria Sousa e
Semedo, segundo Ljungstedt, alegam que os portugueses obtiveram
autorização para habitar Macau
porque tinham limpado a ilha de piratas. Desta forma, o insidioso detractor de
Macau, repisando sempre na autorização dos mandarins, falseia os relatos de
dois eminentes historiadores, quanto ao facto de os portugueses terem sido
presenteados com a posse de Macau e de que, tendo arrebatado o lugar aos
piratas, à ponta de espada, fundaram a colónia incondicionalmente.
A versão de Faria Sousa é, em resumo, a seguinte: ermo árido,
abundante em rochas, o que tornava o local facilmente sustentável e bem
adaptado para refúgio de bandidos, Macau
era, então, uma temida guarida de piratas. Os chineses queriam desalojá-los
dessas cavernas mas, evidentemente, faltava-lhes a coragem para o fazer e mal
avistaram os portugueses ao largo de Sanchuan apressaram-se a oferecer-lhes o
perigoso local para habitação com a condição de estes expulsarem os piratas. Os
portugueses aceitaram prontamente o papel de Hércules contra Cacus: cobiçavam o
prémio e esperavam poder alcançá-lo com a sua coragem, e embora os bandidos
tivessem a vantagem de ser bons conhecedores dos caminhos labirínticos do
lugar, foram facilmente derrotados. Então, os vencedores, com as armas numa mão
e a picareta na outra, fundaram a cidade instalando-se onde lhes apeteceu, visto
não haver lá ninguém com quem partilhar a terra.
Do mesmo modo, relata Semedo, a partir de Macau uma grande horda de piratas hostilizava os distritos
adjacentes; os chineses tentaram desenraizar o demónio e, quer por temor quer
para evitar o risco, sabedores da bravura dos portugueses, pediram-lhes que
realizassem a tarefa, prometendo-lhes Macau
como residência, se de lá expulsassem os piratas. Os portugueses empreenderam a
tarefa com alegria: eram muito inferiores em número mas, mais conhecedores da
arte de guerrear, investiram contra o inimigo de tal maneira que sem sofrer
grandes baixas, as infligiram pesadamente, cedo se achando senhores da
situação. Imediatamente se puseram a construir, cada um escolhendo para si o
local que mais lhe agradava. Se Macau
tivesse sido conseguido por conquista, argumenta Ljungstedt, o facto não teria
sido ignorado pelos primeiros jesuítas escritores na China. E não o foi: Semedo,
que veio para Macau no princípio do século XVII, era um desses escritores. A
famosa Déscription de la Chine de Du Halde é um repositório de
informações autênticas, reunidas pelos jesuítas numa época em que gozavam de oportunidades
excepcionais na China. Ljungstedt, no entanto, ignora a seguinte versão de Du
Halde:
No reinado de Kia Tsing um pirata chamado Tchang Si Lao, que pirateava
pelas águas de Cantão, tomou Macau e sitiou a capital da província. Os
mandarins pediram ajuda aos europeus. Estes, que estavam a bordo dos seus
barcos de mercadorias, puseram fim ao cerco e perseguiram o pirata até Macau,
onde o mataram. O vice-rei comunicou esta vitória ao imperador que emitiu um
édito pelo qual dava Macau a esses mercadores da Europa, a fim de que eles se
pudessem lá instalar.
Segundo foi vigorosamente relatado por Sonnerat, Cantão era
então assediada por bandidos que, saídos das distantes Ilhas dos Ladrões,
assaltavam os barcos nativos. Fracos e temerosos, os chineses não mais se
aventuraram a afastar-se da costa, ou a lutar contra um grupo de duros
malfeitores a quem se contentavam em chamar selvagens. Coube a um povo europeu
mostrar que esses selvagens não eram invencíveis. Ao desbaratá-los, os
portugueses levaram a cabo a tarefa que os chineses ansiosamente desejavam.
Estes, armaram-se todos, mas apenas para serem meros espectadores. Os
portugueses alcançaram vitória após vitória, eventualmente varrendo a
importante horda. Como recompensa os vencedores asseguraram uma pequena faixa de
terra árida, onde fundaram a colónia de Macau, e obtiveram também
grandes privilégios, de que foram mais tarde despojados. Certamente a perda
daqueles privilégios, que foram substituídos pelas sempre crescentes exigências
chinesas, que incluíam o foro do chão, colocou Macau numa posição que
parecia substanciar as alegações dos cronistas chineses acerca da situação
originária da colónia. Ljungstedt opina que Macau foi obtido apenas pelo pagamento
do foro do chão e que seria mais seguro atribuir a sua posse à generosidade
imperial do que ao direito de conquista, considerando que o local teria de ser abandonado
se as autoridades chinesas decidissem proibir o fornecimento de provisões e
ordenar a saída dos comerciantes, artífices e criados chineses. Por outras palavras,
Ljungstedt insinua que, estando Macau em situação precária, o processo usual
adoptado pelos gananciosos mandarins para obter presentes para o Cérbero
poderia também ter servido para obrigar os portugueses a silenciar as tradições
que honram os anais das relações europeias com a China.
Até onde as opiniões preconceituosas de Ljungstedt
ainda prevalecem, pode bem ser avaliado pelo seguinte: Os portugueses exigiram sempre para Macau uma independência da jurisdição
chinesa, que o governo chinês, até 1887,
nunca consentiu. Muito se tem falado de um golden chop, que se diz ter
sido concedido pelo imperador chinês e ter-se perdido representar o título de
posse da colónia mas não há registo de alguma pessoa não oficial o ter jamais visto.
Os factos são todos contra a reivindicação. O foro, um reconhecimento total de
soberania, foi pago a Heungs-han Hien desde o princípio até ao coup d'état
do governador Amaral em 1849. Mas,
com efeito, esse foro surgiu de um simples agrado ao hai-tao; e mais de uma vez
ele foi recusado por ordem do imperador, reimposto pelos mandarins e, em vão, o
governo de Macau a ele se opôs insistentemente outra vez. Não há um pacto formal,
uma prova documental para demonstrar que a posse original de Macau fosse um
mero arrendamento, como se pretendia, em vez de uma cedência voluntária, em paga
pela libertação de Cantão, como foi amplamente atestado pelo testemunho histórico
europeu. Dificilmente se pode dizer que a versão portuguesa, durante longo tempo
sustentada em condições deploráveis e derrogatórias, esteja influenciada por qualquer
raison
d'état. Nem pode haver razão convincente para que muitos historiadores
imparciais e fidedignos, Raynal, por exemplo, apoiassem essa versão, a
não ser pelo amor à verdade e à justiça». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926,
Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação
Oriente, ISBN 972-9418-01-2.
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