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Silvério e a Garruda
«Escondera-se o sol nas candentes bandas do poente; e a atmosfera coara
morosamente os derradeiros clarões da sua auréola de deslumbrante luz, numa
concupiscência indescritível. Do alto das escabrosas penedias ressoavam numa
monotonia estridente e lúgubre, os gritos das aves agourentas, vindo unir-se ligeiramente
com o vago troar dos ralos e das cigarras no fundo ressequido dos prados.
Nas balsas marginais dos riachos, os rouxinóis entoavam os seus
alegretos; poemas rústicos de saudades
imensas. À beira dos caminhos os ingénuos e acetinados pirilampos, mostravam
o brilho um tanto fosco da sua luz subtil aos pequenos viageiros do crepúsculo,
talvez invejosos dela. E pelas quebradas dos montes, ecoava o pungente ulular
dos famintos lobos em busca dalguma presa inocente, refeição dessa noite.
Então o pastorinho Silvério, cansado das fadigas, e ébrio do sol
daquele dia de Agosto, começou de reunir o manso rebanho, que todos os dias
apascentava com a resignação das almas ignorantes. E depois de reunido, lá foi
por atalhos e veredas conduzi-lo ao bardo, onde o pai o esperava para proceder
à contagem. Contadas que foram, faltava uma ovelha, era a garruda.
E ele, o Silvério, sempre paciente e alegre, sem esperar que lho dissessem,
tornou aos montes em busca da ovelha perdida. Chegando àqueles onde houvera
estado durante o dia, sobe pelos pedregulhos grosseiros e irregulares, espraia
a vista pelas cumeadas, embrenha-se nas fragas, chora, chega mesmo a zangar-se,
e gritando sempre, garruda!...
Garruda!... todos os esforços
que emprega são baldados. Só uma cousa notaria se não fora o estado aflitivo em
que se encontrava: Era que pelas quebradas dos montes, não se ouvia agora só o
pungente ulular dos famintos lobos em busca de alguma presa inocente, mas sim
também o rosnar surdo e raivoso de feras em disputa.
No dia seguinte, à hora matinal em que nas balsas marginais dos riachos
os rouxinóis começavam a entoar desafogadamente os seus alegretos, passava o
Silvério com o rebanho por uma vereda espessa e tortuosa, quando junto duma
seara viu uns pequenos ossitos recentemente roídos, e ensanguentados.
Levado por um vago pressentimento, aproxima-se, mas de repente solta um
grito lancinante ao mesmo tempo que por entre soluços murmura: são os ossos da garruda... e
pelas suas faces rudes e crestadas rolaram muitas lágrimas de sublime
sentimento. Depois, lá foi pelas serranias apascentar o manso rebanho, com a
resignação das almas ignorantes». In J. A. Duro Junior, Portalegre, 24-8-93, Diário
de Elvas, nº 55, 4-9-1893.
In José Duro, Textos dispersos, Coordenação de António Ventura, edições
Colibri, 1999, ISBN 972-772-120-6.
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