O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa
«Daí que tenha ignorado a confusão
que estava a acontecer poucos degraus acima. É que, na balaustrada aonde ia dar
este primeiro vão de escada, esperava-me meia dúzia de pessoas que acompanhavam
cada passo e analisavam cada gesto que eu fazia.
Observei-as e notei esse olhar
incrédulo com que era habitual repararem em mim desde que ressurgira como Pessoa.
Se, para alguns, a primeira sensação era o espanto perante a diferença entre a reprodução
viva e a imagem estática, para outros, o mais estranho era o facto de eu falar.
Notara essa incapacidade em aceitarem como real a fantasia que tinham de mim nestes
últimos tempos em que ocupava os meus dias no Martinho da Arcada a reviver o passado.
Havia os que passavam a correr e ficavam
com uma leve impressão de um engano; os que iam a caminhar em paz e a perdiam com
o vislumbre de alguém que consideravam estar morto; os que paravam e fixavam os
olhos no poeta enquadrado por um cenário que era mais literário do que possível;
os que não queriam acreditar e me questionavam, e os que não se surpreendiam, talvez
por já terem visto de tudo. Aliás, a existência de vida para um heterónimo de Fernando
Pessoa após a sua morte não era coisa que acontecesse pela primeira vez já que antes
um escritor até fizera um romance inteiro sobre o reaparecimento de Ricardo Reis
por nove meses!
A verdade é que as pessoas ainda se
surpreendiam com o meu regresso, mesmo que todos soubessem de tal novidade devido
à quantidade de notícias publicadas nos últimos dias, e continuavam a ficar especadas,
tal como acontecia com as que me aguardavam no fim do lance de escadas. A razão
deste espanto não seria de estranhar, visto que a segunda vinda do poeta era palpável
na carne do meu corpo e não como mero protagonista de um livro. Se me espetassem
sairia sangue, coisa que ao Ricardo Reis do romance jamais aconteceria, porque era
feito de palavras. Aliás, se me dessem tempo, o que iria sangrar era a continuação
da obra do poeta. E isso é que era importante, até porque faltava aos portugueses
alguém em quem acreditar e que lhes devolvesse a sua própria voz. Quem melhor
do que um poeta para interpretar esta angústia tão visível num povo que já elegera
um outro poeta como o seu patrono do dia nacional? A única condição que
colocaria, quando fosse o tempo certo, era a de não me virem com a história do V
Império. Não queria mais ilusões!
Eram já mais de uma dúzia as pessoas
que me esperavam no primeiro andar da Casa. Se fora lento a subir as escadas, elas
foram rápidas a concentrar-se junto ao corrimão, mesmo que eu não tivesse reparado
no ajuntamento, porque prestei mais atenção ao que estava pendurado ou pintado nas
paredes. Curiosas e receosas, iam recuando cada vez que eu avançava, ladeado
pelo funcionário que me encaminhava para o lugar que definira como sendo o de uma
surpresa feliz. Eis senão quando a directora da Casa interrompe a minha entrada
triunfal e me manda parar». In João Céu e Silva, A Segunda Vida de
Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN
978-989-702-565-5-
Cortesia de AGePazEditores/JDACT
JDACT, Fernando Pessoa, João Céu e Silva, Literatura, Conhecimento,