«Como saber que troço melancólico do seu infindável trajecto estava a percorrer quando não erguia a mão naquele seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém ficava realmente alegre por nos ver, embora esse alguém não soubesse quem éramos ou, melhor dizendo, nos visse todas as manhãs como alguém diferente do dia anterior. Só por uma vez soube, graças a Cromer-Blake, em que momento exacto daquela sua vida sem sobressaltos, passada durante tantas horas atrás dos vidros da sua cabina, se encontrava Will. Cromer-Blake esperou por mim à porta do edifício e avisou-me: Diz algo ao Will, umas palavras de conforto.
Aparentemente, hoje está a viver
no dia em que lhe morreu a mulher, em 1962, e ficaria muito magoado se um de
nós não se apercebesse do sucedido ao entrar. Está muito triste, mas o seu bom
humor natural permite-lhe usufruir do seu protagonismo de hoje apenas na medida
certa para não perder de todo o sorriso. De modo que, até certo ponto, também
está satisfeitíssimo. E, já sem olhar para mim,
fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um
perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as
quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e
despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do
fingir. Era o caso de Cromer-Blake e também do Inquisidor, também conhecido por Carniceiro ou Estripador,
e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar.
Mas quem negava todos os
simulacros de agitação e dava corpo e verbo ao estatismo ou estabilidade do
lugar era Will, o velho porteiro do edifício (a Institutio Tayloriana, assim
chamada com pompa e em latim) onde eu costumava trabalhar em sossego e sem preocupações.
Nunca vi um olhar tão limpo (certamente não na minha cidade, Madrid, onde não existem olhares
limpos) quanto o daquele homem de quase noventa anos, pequeno e polido, invariavelmente
vestido com uma espécie de macacão azul, a quem era permitido permanecer muitas
manhãs na sua cabina envidraçada a dar os bons-dias aos professores à medida
que iam entrando. Will não sabia, literalmente, em que dia vivia, e assim, sem
que ninguém pudesse prever a data que escolhera e menos ainda saber o que
determinava a sua escolha, passava todas as manhãs em anos diferentes, a viajar
para trás e para a frente no tempo de acordo com a sua vontade ou, melhor
dizendo, provavelmente à margem da sua vontade. Havia dias em que, mais do que
acreditar que estava, na verdade estava em 1947, ou em 1914, ou em 1935, ou em
1960, ou em 1926, ou em qualquer um dos anos da sua longuíssima vida. Às vezes
era possível intuir se Will se encontrava instalado num ano mau mediante uma
leve expressão de temor (era um ser demasiado puro para que nele houvesse espaço
para a preocupação, pois carecia absolutamente da visão de futuro sempre
associada a tal sentimento) que, no entanto, nunca chegava a assombrar o seu
olhar confiante e ufano.
Podíamos suspeitar que uma manhã
de 1940 estava para ele dominada pelo medo dos bombardeamentos da noite
anterior ou da manhã de 1916 o podia encontrar um pouco abatido com as más notícias
procedentes da ofensiva do Somme, e que uma de 1930 o tinha acordado sem um
tostão no bolso e com os olhos cautelosos e tímidos de quem tem de pedir
emprestado e ainda não decidiu a quem. Noutros dias, o ligeiríssimo apagamento do
seu imenso sorriso ou do brilho do seu olhar tão afectuoso era de todo indecifrável,
nem sequer objecto de fabulação, porque, sem dúvida, devia-se a pesares e
sensaborias da sua vida pessoal, que nunca interessou a um professor ou aluno».
In
Javier Marías, Todas as Almas, Editora Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN
978-989-665-914-4.
Cortesia de EMFontes/EAlfaguara/JDACT
JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha,