terça-feira, 5 de março de 2024

Todas as Almas. Javier Marías. «… quando não erguia a mão naquele seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém ficava realmente alegre…»

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«Como saber que troço melancólico do seu infindável trajecto estava a percorrer quando não erguia a mão naquele seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém ficava realmente alegre por nos ver, embora esse alguém não soubesse quem éramos ou, melhor dizendo, nos visse todas as manhãs como alguém diferente do dia anterior. Só por uma vez soube, graças a Cromer-Blake, em que momento exacto daquela sua vida sem sobressaltos, passada durante tantas horas atrás dos vidros da sua cabina, se encontrava Will. Cromer-Blake esperou por mim à porta do edifício e avisou-me: Diz algo ao Will, umas palavras de conforto.

Aparentemente, hoje está a viver no dia em que lhe morreu a mulher, em 1962, e ficaria muito magoado se um de nós não se apercebesse do sucedido ao entrar. Está muito triste, mas o seu bom humor natural permite-lhe usufruir do seu protagonismo de hoje apenas na medida certa para não perder de todo o sorriso. De modo que, até certo ponto, também está satisfeitíssimo. E, já sem olhar para mim,  fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do fingir. Era o caso de Cromer-Blake e também do Inquisidor, também conhecido por Carniceiro ou Estripador, e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar.

Mas quem negava todos os simulacros de agitação e dava corpo e verbo ao estatismo ou estabilidade do lugar era Will, o velho porteiro do edifício (a Institutio Tayloriana, assim chamada com pompa e em latim) onde eu costumava trabalhar em sossego e sem preocupações. Nunca vi um olhar tão limpo (certamente não na minha cidade, Madrid, onde não existem olhares limpos) quanto o daquele homem de quase noventa anos, pequeno e polido, invariavelmente vestido com uma espécie de macacão azul, a quem era permitido permanecer muitas manhãs na sua cabina envidraçada a dar os bons-dias aos professores à medida que iam entrando. Will não sabia, literalmente, em que dia vivia, e assim, sem que ninguém pudesse prever a data que escolhera e menos ainda saber o que determinava a sua escolha, passava todas as manhãs em anos diferentes, a viajar para trás e para a frente no tempo de acordo com a sua vontade ou, melhor dizendo, provavelmente à margem da sua vontade. Havia dias em que, mais do que acreditar que estava, na verdade estava em 1947, ou em 1914, ou em 1935, ou em 1960, ou em 1926, ou em qualquer um dos anos da sua longuíssima vida. Às vezes era possível intuir se Will se encontrava instalado num ano mau mediante uma leve expressão de temor (era um ser demasiado puro para que nele houvesse espaço para a preocupação, pois carecia absolutamente da visão de futuro sempre associada a tal sentimento) que, no entanto, nunca chegava a assombrar o seu olhar confiante e ufano.

Podíamos suspeitar que uma manhã de 1940 estava para ele dominada pelo medo dos bombardeamentos da noite anterior ou da manhã de 1916 o podia encontrar um pouco abatido com as más notícias procedentes da ofensiva do Somme, e que uma de 1930 o tinha acordado sem um tostão no bolso e com os olhos cautelosos e tímidos de quem tem de pedir emprestado e ainda não decidiu a quem. Noutros dias, o ligeiríssimo apagamento do seu imenso sorriso ou do brilho do seu olhar tão afectuoso era de todo indecifrável, nem sequer objecto de fabulação, porque, sem dúvida, devia-se a pesares e sensaborias da sua vida pessoal, que nunca interessou a um professor ou aluno». In Javier Marías, Todas as Almas, Editora Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN 978-989-665-914-4.

Cortesia de EMFontes/EAlfaguara/JDACT

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