A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo
«Dobaram
as horas até que, alta madrugada, regressou frei Estêvão com o hábito. Vós,
senhores, dizia enquanto ajudava el-rei a vestir-se, ficai aqui quietos, como
se Sua Alteza estivesse pousando. Sem fazerem bulha saíram ambos, com Marco
Túlio, e se foram pelo Grande Canal, entrando pelo rio de San Vio, ao mosteiro de
São Domingos. Aqui, senhor, dizia o frade, estais seguro e fora de perigo
daquela canalha que pela boca da rua fervia. Agora, disse el-rei, é urgente que
eu saia da cidade. Estará tudo prestes em pouco espaço, Alteza.
Foi
dentro e tornou com um fradinho velho que faria companhia a el-rei naquela
jornada. Mas o frade, mal se viu embarcado na gôndola com um mar alteroso, apertou-se-lhe
o coração e saiu fora, não havendo maneira de o convencer a acompanhar o
viajante. Vejo-me forçado a ir convosco, disse frei Estêvão. Seria melhor que
eu ficasse, para desnorteio dos Castelhanos. Sou mais conhecido e de maior
suspeita. Mas, a Deus graças, que serei vosso ditoso companheiro neste transe.
Marco
Túlio por barqueiro, na manhã nascente se partiram, com vento teso, fazendo-se
às águas revoltas que, não fossem as casas, confundiam canais, rios e ruas da
cidade. Em redor da casa de dom João, os Espanhóis alvoroçavam-se. Corria que
alguns deles haviam visto entrar um frade e saírem dois. Informado, o
embaixador expediu logo correio por mar para ir dando rebate dos frades por
todas as ribas e costas. Mas já, esgueirando-se por entre canaviais,
sinuosidades de ribeiras, véus de choupais, moitas de funchos na pantanosa planície,
os fugitivos iam longe. Sob o toldo da ré acomodou-se o rei, fatigado. El-rei
adormeceu, disse Marco Túlio em voz baixa manobrando o timão.
Frei
Estêvão olhou o rei e o pensamento enfunou-se-lhe como as velas da falua. Aqui
vou eu com Sua Alteza. Aqui vou eu a caminho do futuro, de não sei onde nem
quando, a caminho de algures, de alhures, escoltando uma ideia. As mudanças não
alteram a natureza das pessoas. Arreiem-se bandeiras dos mastros, para ver
ondular ao vento outras cores e outros símbolos, abafem-se hinos, amordacem-se
gritos de guerra, para gritar outros ideais, cantar outras verdades.
Anatematizem-se reformas, para decretar em concílios dogmas de outra fé, caminhos
das consciências. Apeia daí o teu ídolo, o teu herói, para eu lá colocar o meu.
Sábio foi aquele príncipe que não permitiu lhe erguessem estátua nos Estaus.
Troquem-se os nomes de ruas, de pontes, de castelos e palácios, de cidades,
nações e reinos. Não se muda o essencial, que é o destino e a morte.
Tanta
canseira, meu Deus! Doem-me os ossos da alma. Amortalha-te, também tu, no
capote e dormita... Mas esta luta não é de casca de ovo, de cortiça de árvore,
senão do âmago, do cerne, da gema, da seiva. El-rei é a ressurreição da liberdade
dos antepassados, que lavraram a terra, o mar e a história... Como ele dorme!
Que frágil parece! E se os inimigos o alcançam? Se mo matam?... Não matam a
ideia. Irei até ao fim. Para o proteger ou para o ressuscitar fá-lo-ei, se for
preciso, substituir por esse outro que, parecido com ele, aí vai a velejar o
seu sonho. Tire-se um rei, ponha-se outro, conquanto, na floresta de enganos e
desenganos, permaneça a ressurreição... Sabeis, que temos entre nós um traidor?
Acordou Marco Túlio a frei Estêvão do solilóquio interior». In
Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,