Goa
«(…) Já pelos montes vêm ecoando longínquas e surdas trovoadas. Uma
aragem húmida e saturada de um aroma peculiar àqueles climas, um cheiro de
barro novo, prenuncia-nos que a chuva começa a cair sobre os montes mais
próximos. De súbito estala uma trovoada. Um vento rijo e possante espalha grossos,
fios de água e a terra exala um cheiro acre como o de água lançada em ferro
rubro. O calor exalado da terra pelas gotas de água atinge a temperatura de
ebulição e a poeira levantada pelo vento voltija pelo espaço como as faíscas de
um incêndio; por sobre as nossas cabeças, bandos de gralhas, espavoridas e desordenadas, passam grasnando, e o céu
parece descer como um capacete de ferro em brasa: estamos asfixiados. Começa,
no entanto, a noite a subir bruscamente; a chuva não se fará tardar, porque à
proporção que a noite caminha, uma aragem fresca e húmida nos indica que ela
cai já em abundância pelos Gates. É noite cerrada. Nem uma estrela brilha no
céu; em vez da trovoada a barra da Aguada brama com furor, como o despenhar de
uma cascata; o horizonte, de quando em quando, estremece ao clarão dos
relâmpagos que deixam ver as águas encapeladas e da cor de terra que dos montes
corre pelo Mandovi à boca do mar:
Espalham cheiros nos campos
As florestas tropicais,
volitam os pirilampos
por sobre os verdes juncais.
Já se não ouvem os trilos
que ao sol modulam as aves,
ouve-se a bulha dos grilos
e uns sussurros mais suaves.
Sopra ama tépida aragem;
grupos de esbeltas palmeiras
acentuam na paisagem
as estaturas ligeiras.
F. Leal, in ‘Serenata
Indígena’
E a noite triste e espessa, como manto de viúva,
cobre silenciosa o espaço de há pouco cheio de luz e tintas, ululando raivas e
gargalhadas satânicas: segue a majestade sombria e muda do silêncio. O mundo
afigura-se-nos então um templo onde se adora o Deus solitário das lendas
hebraicas ou a cripta funerária dos egípcios, onde reina a Morte. Esta mudez,
porém, vêm, em breve, romper as fortes bátegas de água e as colunas de ar
açoitando o arvoredo com ímpeto insano. Cobertas de água, impelidas por um
vento doido, redemoinham pelo ar em espirais tortuosas; rompem por entre os
palmares, como um esquadrão de fogosos corcéis, e batem nas vidraças, como o
duro granizo. Reboa outra vez, o trovão; o mar braveja com mais furor; cortam o
espaço, em todas as direcções, em doidos ziguezagues, os coriscos; como as
faíscas de uma metralha estalam com mais frémitos, umas após outras, as trovoadas
sobre as nossas cabeças, como se num festim os espíritos celestes arrojassem ao
mármore duro uma baixela de louça e o Deus da vingança ou Satã presidisse
àquele bacanal celeste». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna,
Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN
978-989-719-001-8.
Para Ofélia e Álvaro José, que
estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT