As
caras e as Máscaras
«O
tigre azul romperá o mundo. Outra terra, a que não tem mal, a que não tem
morte, vai nascer da aniquilação desta terra. Ela pede que seja assim. Pede a morte,
pede o nascimento, esta terra velha e ofendida. Ela está cansadíssima e, de
tanto chorar por dentro, ficou cega. Moribunda, atravessa os dias, lixo do
tempo, e quando é noite inspira piedade às estrelas. Logo logo, o Pai Primeiro
escutará as súplicas do mundo, terra querendo ser outra, e então soltará o
tigre azul que dorme debaixo da sua rede. Esperando esse momento, os índios
guaranis peregrinam pela terra condenada. Tem
alguma coisa que dizer para nós, colibri? Dançam sem parar, cada vez
mais leves, mais voadores, e cantam os cantos sagrados que celebram o próximo
nascimento da outra terra. Lança raios, lança raios, colibri! Buscando o
paraíso chegaram até às costas do mar e até ao centro da América. Rodaram
selvas e serras e rios, perseguindo a terra nova, a que será fundada sem
velhice nem doença nem nada que interrompa a incessante festa de viver. Os
cantos anunciam que o milho crescerá por sua conta e as flechas voarão sozinhas
na floresta; e não serão necessários o castigo e o perdão, porque não haverá proibição
nem culpa.
1701. Vale das Salinas. A Pele de Deus
Os
índios chiriguanos, do povo guarani, navegaram o rio Pilcomayo, há anos ou
séculos, e chegaram até à fronteira do império dos incas. Aqui ficaram, frente
às primeiras alturas dos Andes, esperando pela terra sem mal e sem morte. Aqui
cantam e dançam os perseguidores do paraíso. Os chiriguanos não conheciam o
papel. escobrem o papel, a palavra escrita, a palavra impressa, quando os
frades franciscanos de Chuquisaca apareceram nesta comarca depois de muito
andar, trazendo livros sagrados nos alforjes. Como não conheciam o papel, nem
sabiam que precisavam dele, os índios não tinham nenhum nome para ele. Hoje
dizem pele de Deus, porque o papel serve para mandar palavras aos amigos que estão
longe.
1701. São Salvador, Bahia. Palavra da América
O
padre António Vieira morreu na mudança de século, mas não a sua voz, que
continua abrigando o desamparo. Em terras do Brasil ecoam recentes, sempre
vivas, as palavras do missionário dos infelizes e dos perseguidos. Eles não se
enganavam, disse, quando liam o destino nas entranhas dos animais que
sacrificavam. Nas entranhas, disse. Nas entranhas, e não na cabeça, porque o
melhor profeta é aquele capaz do amor, e não o capaz da razão.
1701. Paris. Tentação da América
No
seu gabinete de Paris, está em dúvida um sábio geógrafo. Guillaume Deslile
desenha mapas exactos da terra e do céu. Incluirá o Eldorado no mapa da
América, pintará o misterioso lago, como já é costume, em alguma parte do alto Orinoco? Deslile pergunta se existem
de verdade as águas de ouro que Walter Raleigh descreveu grandes como o mar
Cáspio. São ou foram de carne e osso os príncipes que mergulham e nadam, ondulantes peixes de ouro, à luz das tochas?
O lago aparece em todos os mapas desenhados até agora. Às vezes, chama-se
Eldorado; às vezes, Parima. Mas Deslile conhece, de ouvir falar ou de ler por
aí, histórias que o fazem duvidar. Buscando o Eldorado muitos soldados da
fortuna penetraram no distante novo mundo, lá onde se cruzam os quatro ventos e
se misturam todas as cores e dores, e não encontraram nada. Espanhóis, portugueses,
ingleses, franceses e alemães atravessaram abismos que os deuses americanos
tinham cavado com unhas ou dentes, violaram as selvas aquecidas pela fumaça de
tabaco soprada pelos deuses, navegaram rios nascidos de árvores gigantes que os
deuses tinham arrancado pela raiz, e atormentaram ou mataram índios que os
deuses tinham criado com saliva, sopro ou sonho. Mas no ar foi-se embora e no
ar vai-se embora, sempre, o ouro fugidio, e se desvanece no lago antes que
alguém chegue. Eldorado parece nome de uma tumba sem ataúde ou sudário. Há dois
séculos o mundo cresceu e se fez redondo, e desde então os perseguidores de
ilusões saem, de todos os cais, para as terras da América. Amparados por um
deus navegante e conquistador, atravessam, comprimindo-se nos navios, o mar
imenso. Junto a pastores e tropeiros que a Europa não matou de guerra, peste ou
fome, viajam capitães, mercadores, vagabundos, místicos e aventureiros. Todos
buscam o milagre. No outro lado do mar, mágico mar que lava sangues e
transforma destinos, se oferece, escancarada, a grande promessa de todos os
tempos. Lá se vingarão os mendigos. Lá se transformarão em marqueses os
esfarrapados, em santos os 25 aventureiros e em fundadores os condenados à
forca. As vendedoras de amor se farão donzelas de alto dote.
Sentinela da América
Na
noite pura viviam os índios, os muito antigos, na cordilheira dos Andes. O
condor trouxe o sol para eles. O condor, o mais velho dos voadores, deixou cair
uma bolinha de ouro entre as montanhas. Os índios apanharam a bolinha e
sopraram com toda a força dos pulmões, e soprando o ouro para o céu, no céu
deixaram o ouro aceso para sempre. O sol suava ouro, e com o ouro de seus raios
os índios modelaram os animais e as plantas que povoam a terra. Uma noite, a
lua brilhou envolvida por três auréolas, sobre as montanhas: uma auréola de
sangue, anunciadora de guerra; outra de fogo, anunciadora de incêndio; e uma
auréola negra, de ruína. Então os índios fugiram para os altos paramos,
carregando o ouro sagrado, e junto com o ouro se deixaram cair no fundo de
lagoas e vulcões. O condor, aquele que trouxe o sol para os andinos, é o
zelador desses tesouros. Com grandes asas imóveis sobrevoa os picos nevados e
as águas e as crateras fumegantes. O ouro avisa a ele quando vai chegar a
cobiça: o ouro geme, e assovia, e grita. O condor se lança, vertical, e
seu bico arranca os olhos dos ladrões e suas garras estraçalham a carne deles. Só
o sol pode ver as costas do condor, sua cabeça calva, seu pescoço enrugado. Só
o sol conhece a sua solidão. Visto da terra, o condor é um voo invulnerável». In Eduardo
Galeano, Memória do Fogo, As caras e as Máscaras, 1997, tradução de E.
Nepomuceno, L&PM Editores, 2004, ISBN 978-852-542-917-9.
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