sábado, 18 de abril de 2015

Diário VIII. Miguel Torga. «Não chego a saber o que estes reaccionários pretendem de mim. Saem-me ao caminho, agarram-se, colam-se, dizem piropos, e quanto mais pressa tenho, mais insistem»

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Desarticulação
«Brinquedo com enigmas por dentro,
desmancho-me e concentro
a minha angústia sobre cada peça…
Dão-nos corda, e começa
o movimento;
mas depois é o tormento
de saber
se era tudo a valer
ou fingimento…»
Coimbra,7 de Outubro de 1955

Coimbra, 8 de Outubro de 1955
«Já só dou à maior parte das notas deste Diário o tempo de fumar um cigarro. Teimoso, o meu espirito recusa-se a destilar o bagaço dos acontecimentos num alambique paciente e subtil. Talvez porque o resultado é sempre negativo, evita as análises demoradas, e foge. Nos primeiros tempos, quando iniciei a grafia sistemática dos grandes e pequenos sismos do meu inquieto mundo, cada registo documentava pelo menos a intensidade da força que originava o abalo, o seu epicentro e a reacção frontal que ele despertava em mim. Depois, insensivelmente, comecei a desfibrar com a minúcia possível essas relações de causa e efeito. Agora, na grande maioria dos casos, nem uma coisa nem outra. Exaro a ocorrência, e passo adiante. Mas uma tal cobardia de avestruz nada resolve. Enterrar os miolos na areia e fingir ignorar a significação dos factos, negando-lhes a luz interior que os deve iluminar, acaba por ser mais doloroso do que enfrentá-los. É como assistir a um crime, de costas voltadas.

Coimbra, 10 de Outubro de 1955
Consola-se a gente de ver como esta barcaça capitalista mete água por todos os lados e se afunda lentamente, para dar vez a outra navegação… Algum dia o dorido coro da tragédia da história havia de subir também ao palco e representar. O papel que ele fará, ninguém sabe. Mas é de esperar que não fique abaixo dos actores que o precederam. Pelo menos saberá demonstrar nas tábuas o que é preciso demonstrar de uma vez para sempre: que a liberdade do homem é um destino.

Coimbra, 18 de Outubro de 1955
Não chego a saber o que estes reaccionários pretendem de mim. Saem-me ao caminho, agarram-se, colam-se, dizem piropos, e quanto mais pressa tenho, mais insistem. Ora como se não trata de qualquer interesse vivo, sincero, profundo, há-de haver uma explicação para o caso. A que vejo, afigura-se-me sinistra: inquisidores que são, os sujeitos devem querer investigar, perscrutar, conhecer a última heresia…» In Miguel Torga, Diário VIII, Coimbra, 1959, 1999, Publicações Dom Quixote.

Cortesia DQuixote/JDACT