quarta-feira, 29 de abril de 2015

Marânus. Poesia. Teixeira de Pascoaes. «E que importa a distância que separa teus lábios dos meus lábios? E que importa que eu seja luz eterna e sempre clara e tu sombra carnal e transitária? Que tu vivas, além, num outro mundo, se nos prende, amoroso, o fio astral…»

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Marânus. Marânus e Eleonor
[…]
«Tu foste para mim o que a semente,
na escuridão da terra sepultada,
foi para a flor gentil da Primavera,
apenas em perfume idealizada...
Tu és o meu passado, assim as árvores
são talvez teu passado; misterioso
tempo em que o mundo trágico ensaiava
seu anímico voo esplendoroso!
E, depois, tu nasceste, ó criatura!
E, sofrendo ideal melancolia,
outra vida sonhaste, mais perfeita...

Sonhaste-me...,e fui dada à luz do dia...

Vivo em teu coração; mas, em ti próprio,
há tão grandes distâncias como aquelas
que inundam de penumbra e de silêncio
o espaço que medeia entre as estrelas.

E que importa a distância que separa
teus lábios dos meus lábios? E que importa
que eu seja luz eterna e sempre clara
e tu sombra carnal e transitária?
Que tu vivas, além, num outro mundo,
se nos prende, amoroso, o fio astral
que prende o olhar à estrela e o mar profundo
à sede que o sol tem das nossas lágrimas?

Sou aquela que á amada; mas não amo,
porque o amor odeia o que é eterno;
e as suas labaredas se alimentam
do que é mudança, tempestade, inferno!

Logo, a Pastora, inquieta. És o demónio,
que vais pisando a sombra caminhante
deste homem que delira e tem, na fronte,
o Destino que o faz andar errante!
Ah, para que o persegues, sem piedade?
E para que roubá-lo aos meus carinhos?
Não és da nossa pobre humanidade,
nem pertences à terra e à luz do sol!
Ignoras a alegria de quem ama
e se sente mortal em seu amor.
E nunca ardeu, em ti, aquela chama,
que nos transforma em cinza e poeira vã!
Tu nunca foste esposa, filha ou mãe
de condenados, mártires, desgraçados!
Nunca ergueste, nas mãos, saudando alguém
o cálice divino da Amargura!
Essa tua quimérica beleza,
de Deusa e não humana, desconhece
a sagrada volúpia da tristeza
e o antegosto abismático da morte.

E Eleonor, sorrindo: eu te perdoo
essas loucas palavras que disseste.
Tu viste-me, e não sabes quem eu sou.
Assim tenho vivido incompreendida.

A Donzela, mais pálida, escutava
aquela voz, tão séria!, de Eleonor
que os ermos ventos frios imitava,
quando perpassam na ramagem densa.

Solitária Pastora, que eu avisto,
encantada nas brumas da Natura,
tu não vês o lugar onde eu existo
nem a essência divina do meu rosto!
Nunca a alegria plena tu sentiste,
nem o prazer infindo! E a doce luz
dos teus olhos, às vezes, ê tão triste
que dá melancolia às próprias coisas...
És a beleza, sim, que a vária sorte
em efémero barro quis moldar;
e os teus beijos, mulher, sabem às lágrimas
que não podes, aflita, derramar!
Ah, sempre te contemplo da distância
que separa dois reinos, como tu
contemplas uma rosa, nessa infância
de Abril que, no teu corpo, se insinua.
Quando olhas para uma árvore, talvez ela
fique toda a tremer e tenha medo!
E as árvores talvez sejam como espectros
para o nocturno e trágico rochedo...
E eu que sou para ti? O mesmo que és
para as flores do campo; o novo ser
dum novo Reino; a lama, a esplendidez,

em que a vida, por fim, se converteu.

Tu és o amor amante; eu sou o amor
amado. Eu sou a vida e tu somente,
és aquilo que vive. Eu sou a dor
e a dor não sofre, não, mas é sofrida.

E Marânus, depois: eu te prometo
a sublime e final revelação.
Para o grande silêncio vem comigo
e também para a grande solidão.

E Eleonor, estendendo a mão direita,
apontou-lhe o horizonte montanhoso,
de onde a florida aurora nos espreita,
por entre névoas de íntimo fulgor.
Poema de Teixeira de Pascoaes, in ‘Marânus

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT