«(…) O grito saiu abafado. Sutherland tinha o rosto tão
inflamado, estava tão congestionado, que Christian pensou que iria rebentar e
cair ao chão com uma apoplexia. Está bem, respondeu em voz baixa. Desceu as
escadas e passou pelo outro homem com movimentos deliberadamente passivos e
contidos. Sutherland podia sentir vontade de o matar, um direito que lhe
assistia, mas Christian não tinha a mínima intenção de ser o causador da morte
do homem no vestíbulo da própria casa. Além disso, precisava de respirar ar
fresco. Sentia-se embriagado. Ao abrir a porta, continuou a sentir a mão
direita desajeitada e adormecida. Fechou a porta atrás dele com a mão esquerda
e tropeçou. Cambaleante, apoiou-se no corrimão de ferro da entrada. Estava Lua
cheia e esta iluminava o manto de névoa que cobria o fundo da rua. Uma neblina
azulada que contrastava com a escuridão das fachadas e que se erguia
lentamente. Christian continuou agarrado ao corrimão, a olhar para a encosta.
Não havia dúvida, passava-se qualquer coisa de errado. Sentia-se enjoado,
atordoado e..., estranho. Uma ideia louca de que o tinham envenenado
atravessou-lhe o pensamento. Eydie? O
chocolate. Eydie seria capaz de o envenenar? Por que motivo faria semelhante
coisa? O coração batia-lhe acelerado. Engoliu em seco várias vezes numa
tentativa para se acalmar, para pensar. Passado um bocado, soltou o corrimão. O
ar fresco pareceu dar-lhe forças. Respirou fundo algumas vezes e recompôs-se.
Junto à base da escada que dava acesso à casa vislumbrou um vulto negro.
Olhou-o de lado e viu que se tratava do próprio chapéu. Desceu os degraus,
passou ao lado do vulto e voltou a lembrar-se que era o seu chapéu. A carruagem
esperava-o duas ruas mais abaixo. Olhou inseguro para o chapéu e prosseguiu.
Não lhe ocorria nenhum motivo para que Eydie o envenenasse e isso incomodava-o
bastante. Mas agora, ao andar, sentia-se melhor. As coisas voltavam ao lugar.
Quando se aproximou da carruagem, o cocheiro desceu rapidamente da boleia e
abriu-lhe a portinhola. Cass e Devil saíram imediatamente da
carruagem e sacudiram as caudas peludas, eufóricos. Christian encostou-se a um
dos lados da carruagem e deixou que os cães saltassem à vez para cima dele.
Acariciou-lhes as orelhas com uma mão, chamou Devil para que voltasse e
deixasse de cheirar os depósitos de carvão que se encontravam junto do passeio,
e entrou para a carruagem. Cass deitou-se obediente aos pés de
Christian, mas Devil introduziu o focinho às manchas pela luva e tentou
sentar-se ao lado dele. Christian acariciou a cabeça do setter. Quando a
carruagem começou a andar, ergueu a mão para tirar o chapéu e descobriu que não
o tinha. Encostou a cabeça ao assento. Sutherland. Sutherland exigia-lhe uma
reparação. Christian só queria dormir. Flectiu os dedos da mão direita para se
livrar daquela sensação de peso, de adormecimento, que continuava a sentir.
Sonolento, pensou que, por uma vez na vida, era-lhe conveniente ser canhoto
porque se não o fosse ser-lhe-ia impossível empunhar uma pistola.
Ainda acho que é impossível. Sem dúvida que vou continuar a
achá-lo. Como é possível que alguém como tu, pai, espere vir a receber a devida
consideração de uma pessoa com a sua... Archimedea Timms interrompeu-se, à
procura da palavra adequada, ... Com a sua posição? Terás a amabilidade de me
servir uma chávena de chá, Maddy?, pediu-lhe o pai naquele tom de voz tão
aprazível que não dava azo a que ninguém começasse uma discussão a sério. Para
começar, é duque ,prosseguiu ela por cima do ombro enquanto atravessava a sala
de jantar à procura de Geraldine, já que a campainha da sala não funcionava. O
tempo que demorou a encontrar a criada, a certificar-se de que a água era posta
a ferver, e voltar para o salão não foi suficiente para que esquecesse a
sequência dos pensamentos. É impossível imaginar que um duque leve a sério
assuntos desta natureza... Tens o quadrado junto da mão direita, pai..., já que
ficou bem claro que durante a semana passada não preparou a sua integração. Não
deverias impacientar-te, Maddy. Estas coisas têm que ser feitas com um enorme
cuidado. Está a perder o seu tempo e eu admiro-o por isso. O pai procurou com
os dedos o pedaço de madeira cortada com o formato do número dois e colocou-o
no lugar correspondente para que fosse o expoente de S. Ele não está a perder tempo, gasta-o sem se importar. Sai
continuamente e dedica-se aos prazeres mundanos. Não tem a mínima consideração
nem pela tua reputação, nem pela sua.
O pai sorriu e olhou em frente, enquanto procurava o sinal de
multiplicar e o juntava à sequência de letras e números de madeira que colocara
sobre a toalha de baeta vermelha, os dedos a percorrer os blocos até os
reconhecer pelo tacto. Tens a certeza absoluta desses prazeres mundanos, Maddy?
Basta ler os jornais. Durante toda a Primavera não houve um único acontecimento
social em que não tenha estado presente. E a apresentação do vosso tratado
matemático conjunto na tarde do Terceiro Dia? Já percebi que terei de ser eu a
cancelá-lo, porque ele nem me lembrará de o fazer. O presidente
Milner ficará muitíssimo ofendido, e com toda a razão, porque quem substituirá
Jervaulx no estrado? Tu encarregar-te-ás de escrever as equações no quadro, e
eu estarei ali para responder às perguntas. Sempre que o amigo Milner o
permitir, disse Maddy com amargura. Dirá que é extremamente irregular. Ninguém
se vai importar. Tu encantas-nos com a tua presença todos os meses, Maddy.
Foste sempre bem recebida. O próprio amigo Milner disse-me uma vez que o rosto
de uma dama alegra enormemente os salões das reuniões. Mas é claro que assisto
às reuniões. Como poderia deixar-te ir sozinho? Ergueu os olhos quando a criada
entrou com o tabuleiro. Geraldine pousou o chá sobre a mesa, e Maddy serviu uma
chávena ao pai, pegou-lhe na mão e conduziu-a gentilmente até ao pires e à asa.
Tinha dedos pálidos e macios apesar de tantos anos de trabalhos em casa, e um
rosto no qual, apesar da idade, ainda não se via rugas. Sempre o rodeara um ar
de abstracção, mesmo antes de perder a vista. Que a verdade fosse dita, os
hábitos quotidianos da sua vida mal se tinham alterado após a doença que, anos
antes, o deixara cego. A única excepção é que agora se apoiava no braço de
Maddy quando saía para dar o seu passeio diário ou quando assistia às reuniões
mensais da Sociedade Analítica e usava as peças de madeira e os ditados para as
questões matemáticas, em vez de escrever com a própria pena. Vais hoje a casa
do duque para que te entregue os diferenciais?, perguntou. Maddy fez uma careta
sem necessidade de a dissimular, já que Geraldine saíra da sala. Sim, pai,
respondeu, e esforçou-se para que a voz não revelasse a humilhação que sentia. Voltarei
a casa do duque». In Laura
Kinsale, Flowers from the Storm, Flores
na Tempestade, Editora Arqueiro, 2008, ISBN 978-989-626-121-4.
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