«Povo: gente que trabalha, gente que
luta também. Miséria, desamparo, lágrimas, sofrimento. Camada social esmagada
sob o peso de uma vida amarga e injusta»
Hora
de Folga
«Ana
Pega chegou à rua e disse: Jesus, como estou cansada! Também eu..., respondeu a
Caramilo, dando um ai. Não sentes fome? Uma fome de comer pedras! Tal e qual. parece-me
que era capaz de comer um boi inteiro! Desde o almoço que andei com o sentido
numas papas, que ficaram esperando por mim na panela. Papas? Há, que mundos não
provo umas boas papas! O meu homem torce o nariz quando as vê. Deitaste-lhes
bastante nabiça segada? A nabiça dá-lhes um gostinho… Deitei-lhes nabiça, então
não havia de ter deitado? Para mim, papas sem nabiça não são papas. Estavam ao
pé da casinha térrea da Caramilo, que ela morava ali a dois passos da vila Encarnação,
despediram-se, Ana Pega prosseguiu andando ligeira. Vê se não vens tarde por
causa da senhora, disse de repente a outra, já da soleira da porta. Ela voltou-se,
respondeu na sua voz um pouco esganiçada: Mas nós nunca vamos tarde! No entanto
tu ouviste-la ao almoço... Ora, conversa! Ela nunca se mostra satisfeita...
Manda-a pentear macacos! Seguiu rua fora, num passo sacudido e resmungando lá
por dentro. A senhora... Os remoques da senhora... Que queria ela mais? Trabalhavam
como negras, desde o nascer ao pôr do sol que andavam numa roda viva e ainda
por cima haviam de roubar às horas de descanso? É verdade que em sua casa não morava
relógio por onde pudesse regular-se, mas, Deus lhe valesse! Pegavam no serviço
ao mesmo tempo das outras pessoas que por ali andavam à jorna. Ou lá a patroa
pensaria que pelo facto de serem mulheres tinham obrigação de pegar mais cedo? Uns
metros além da taberna do Xavier encontrou-se com Santinho e Vagom, que vinham
da quinta do dr. Anselmo. Eles pararam e Santinho quis saber se o Alberto já
escrevera. Não, até à data ainda não deu sinal de vida, aquilo por aí não quer
escrever sem primeiro juntar uns contos de réis para meter dentro da carta…
Riu;
mas a ideia do companheiro, perdido lá por umas terras tão distantes que nem supunha
onde ficavam, deixou-a triste e mais cansada do que ao sair da vila Encarnação.
Eu não sei, disse Santinho, no entanto sou do parecer que foi uma asneira o ele
ir para o Alentejo. O Alentejo é longe... E são terras estranhas... O pior de
tudo ainda são as maleitas, acrescentou Vagom. Ouvi contar... Por aqui também
se morre, atalhou-o Santinho. Com maleitas ou não, mas morre-se. Não é por isso
que eu digo que ele fez mal… Eu penso que um pobre é pobre em toda a parte e
que lá, no Alentejo, um qualquer não levanta mais a cabeça do que nós aqui...
Eu bem teimei para que não fosse..., afirmou Ana Pega, como defendendo-se de
uma acusação, que afinal ninguém lhe fizera. Não houve forma. Lá se avenha... Separaram-se,
a mulher continuou a andar. Levava nos ouvidos as palavras cépticas de Santinho
e levava as de Vagom também: Santinho matara-lhe uma esperança secreta que há dias
andava cultivando e Vagom pusera-lhe um frio de medo no coração, Jesus, Virgem
Santíssima, e se o seu Beto apanhasse as maleitas? Se o seu Beto morria? Não
queria pensar em semelhante coisa e não obstante pensava, aquilo era mais forte
que a sua vontade. Depois lembrou-se de que nessa noite tivera uns sonhos maus,
uns sonhos mesmo esquisitos, e o frio em seu peito tornou-se mais frio e mais
nítido se tornou o seu medo. Santinho tinha razão, oh!, sim, tinha razão: o seu
Beto nunca devia ter abalado para uns sítios tão traiçoeiros como esses onde as
doenças andavam à solta, onde a morte andava à solta. À solta na rua, como dois
franganitos fugidos da capoeira, andavam Acácio e Adelaide, os filhos de Ana
Pega. Brincavam na valeta». In Afonso Ribeiro, Povo, Editorial Ibérica,
Porto, 1947, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Cortesia
da E. Ibérica/JDACT