«Em
Portugal, os juízes são, regra geral, impolutos e conscienciosos. Persiste,
todavia, uma certa opacidade quanto aos critérios de promoção na carreira, bem
como resistência à avaliação externa. Por outro lado, o vício de arrogância na
magistratura continua. Também surgem, aqui e acolá, juízes desequilibrados ou
ignorantes. Não obstante, o mais perturbador é o arbítrio daqueles que usam a
justiça para ajustes de contas. Eis histórias que ilustram estas e outras facetas,
algumas das quais apenas divertidas.
A
imagem da juíza
Naquela
segunda-feira, foi o costume no tribunal da Boa-Hora. Por entre funcionários no
pátio, aos berros, a fazer a chamada
para os julgamentos, viam-se amontoados de famílias ciganas e, aqui e acolá,
uns rufias, seguidos de perto pelas mulheres. O que destoava era a quantidade inusitada
de polícias. Também estás cá?,
perguntou um. Claro! Não ia perder o julgamento do ano! Quem ia ser
julgado era um guarda da PSP que teve de ouvir o juiz ler a acusação, tintim
por tintim: crime de prisão ilegal, injúrias e ofensas corporais agravadas. Os
queixosos eram, nem mais nem menos, uma juíza e o seu marido que, por sinal,
era advogado. O polícia lá se explicou. Nessa noite, estava a chefiar a
esquadra da Rua de São Paulo. Um dos guardas apareceu-lhe com um casal detido
por desordem e desrespeito à autoridade. Quando foram identificados, a mulher
disse que era juíza, mas não trazia consigo nenhum documento de identificação.
Ele mirou-a de alto a baixo e não acreditou. Juiz: O que é que o fez
duvidar que a senhora doutora fosse de facto uma juíza? Polícia: Não parecia, não se comportava como tal. Juiz:
Porque é que diz isso? Polícia: Porque
conheço bem aquela zona do Cais do Sodré. É uma rua onde, porta sim, porta não,
há bares frequentados por prostitutas e homens que andam atrás delas. Não
conheço ninguém de boas famílias que frequente esses bares. E, além disso, a
maneira como ela estava vestida... Juiz: Ah! Então, para si o hábito
faz o monge? Polícia: Ali, faz. Juiz:
Oiça lá, não estamos aqui a brincar. Todas as pessoas, aqui presentes nesta
sala, sabem que os juízes são pessoas normais, iguais às outras.
Ao
interrogatório do juiz, seguiu-se o do Ministério Público.
Procuradora: O senhor não
sabe que no Cais do Sodré também há bares frequentados por estudantes e
intelectuais? Polícia: Sei, mas não
é no Texas Bar, à porta onde estava a senhora... Juiz: Trate a senhora por
senhora doutora, se faz favor. Polícia:
Sim, senhor doutor juiz. Ali, onde estava a senhora doutora só há prostitutas. Juiz:
Está bem, está bem, isso agora não interessa.
Depois,
a juíza entrou na sala de audiências para contar a sua versão. É então que o
vestido vem à baila. Era um vestido de reveillon,
explicou. Preto, justo, com um casaquinho por cima. Ela e o marido estavam no
Cais do Sodré, numa noite de passagem de ano, quando tropeçaram num polícia tão
embriagado que estava quase caído no meio da rua. Era, soube-se mais tarde, um
subchefe. Teria sido por isso que os prenderam, por terem visto aquilo que não
deviam ter visto. A juíza garantiu que nem sequer estava embriagada nem
provocara ninguém e que, a dada altura, teve medo porque o ambiente na esquadra
ficou pesado. O guarda negou todas as
acusações. Era mentira que tivesse atirado a juíza contra a parede. Era falso que
lhe tivesse apertado as algemas de propósito. Nunca dissera que comia juízes ao pequeno-almoço. Nem
insinuara que até podia ir a casa da juíza buscar os documentos, mas só se
fosse sozinho com ela... Porém, continuava por explicar o motivo da detenção e
o guarda que foi interrogado a seguir não ajudou nada. O seu testemunho foi tão
atabalhoado que acabou por enterrar o
colega que, aliás, viria a ser condenado. Só
num ponto é que os dois polícias tinham a mesma opinião, conta a jornalista
que, na altura, narrou este julgamento. Tanto
um como outro, garantiram que o vestido da juíza era mesmo transparente e indecente.
Juiz
fora de horas
Dentro
dos tribunais, compreende-se que se exija decoro. A pergunta que se impõe é se,
fora das horas de serviço, poderão os juízes vestir-se como quiserem ou ir onde lhes apetece? Nem sempre.
Foi o caso de um juiz que se tornou cliente VIP de uma casa de alterne. Quando
um dia a polícia vasculhou a boite, à
procura de imigração ilegal, o porteiro esclareceu imediatamente que o senhor juiz bebia copos com as meninas,
descia ao rés-do-chão para os quartos e
o dono perguntava-lhe sempre: Quem
quer que o acompanhe? Mas nunca
passava pela caixa para pagar como os outros clientes. O juiz foi alvo de
um processo de averiguações mas, daquilo que se sabe dos jornais, não passou
disso. Aliás, manteve-se em funções no mesmo tribunal. Bem diferente foi o que
aconteceu a um outro juiz, suspenso durante um ano porque frequentava bares
homossexuais. No cadastro ficou com o seguinte registo: Não poderão deixar de se qualificar como gravemente atentatórias do
decoro, dignidade e prestígio da função judicial, actos como os de excesso de
bebidas alcoólicas em público e da continuada convivência com pessoas em
circunstâncias que objectivamente favoreciam a fama de práticas homossexuais,
com persistência de tais actos mesmo depois do visado se aperceber da
desfavorável reacção que suscitavam, quer na área da comarca, quer na da cidade,
onde tão nefasta e degradante fama também já havia chegado. A história
passou-se há mais de quinze anos mas não deixa de ser elucidativa». In Sofia
Pinto Coelho, As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa, Histórias
insólidas de juízes, advogados, procuradores e de todos nós, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-186-3.
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de ELivros/JDACT