Sonho. Glória. Poder e Intriga.
«(…) As regras têm vários sentidos, são também princípios, e
o casamento entre o príncipe João e a princesa Leonor, nascida em 2 de Maio
de 1458, era isso mesmo, um acordo
entre dois homens que se estimavam, com regras escritas para que ninguém fugisse
às responsabilidades. Mas havia
necessidade de casá-los tão jovens? Havia. Afonso V vendo que
o irmão gastava o tempo que Deus lhe tinha destinado, acertou com ele, em 1470, tudo o que fazia falta para
concretizar o casamento. Neste mesmo ano, em Setembro, o infante Fernando
morreu. O contrato de casamento viria a ser assinado em Janeiro de 1471, já o duque de Beja e de Viseu
estava bem enterrado, um desenlace que não permitiu festas nem celebrações, e
que nos deixa sem poder descrever mais um acontecimento da sociedade desse tempo.
Não houve vestidos novos nem jóias resplandecentes, antes pelo contrário, todos
se enfarpelaram de burel, um tecido grosseiro de lã que se usava para demonstrar
sentimentos lastimosos. Se o príncipe João casou com a infanta dona Leonor sua
prima, isso ficou a dever-se a duas razões determinantes: a falência da destreza
do pai da noiva, por não ser capaz de tomar glória nas lutas que travou em
Marrocos e morreu cedo, e, acima de tudo, porque o rei quis unir a maior Casa
do reino (o infante D. Fernando, quando faleceu era o maior Senhor que nunca
houve em Espanha, que não fosse Rei. Entenda-se aqui Espanha, como a Península
Ibérica) com a Coroa. Por isso de novo a interrogação: será que um casamento destes, assente em tão precárias relações
afectivas, poderá dar certo? A resposta para questões tão imbrincadas
só pode vir noutras alturas e de estâncias mais altas, porque para o consórcio
se realizar, lembro que por enquanto só há um contrato, será necessária a
intervenção do papa de modo a dispensar os primos da consanguinidade. Esperemos
então pelo licenciamento de sua santidade.
Todavia, enquanto a autorização vem e não vem, o príncipe, pouco
dado aos vagarosos expedientes da época, não esteve para partilhar a ronçaria
da Santa Sé. Sentia-se já casado, mesmo sem experimentar os humores e os odores
da princesa, sabemos porquê, ela era ainda uma criança, quis juntar à sua
maioridade um certificado significativo. Quando tomou conhecimento dos preparativos
que o pai tinha em marcha para conquistar Arzila, impôs a sua presença na
expedição. O rei já nessa altura ouvia com muita atenção o príncipe, desde que
ele começou a acertar nas palavras, mas desta vez não achou graça à pretensão. Não
vedes, meu filho, se por qualquer descuido de Deus vós perecerdes na batalha, não haverá quem me suceda? A
principal coisa a que todos devemos olhar é saber bem morrer, meu pai, palavras
que respondiam bem aos cuidados do progenitor. Mas o príncipe João continuava
renitente. Sentia-se homem, a bem dizer já casado, aspirando juntar estas duas
facetas à honrosa condição de cavaleiro que por certo tomaria depois do assalto
à praça magrebina. Visto isso, nada melhor do que fazê-lo a matar mouros junto
do pai, um homem que amava muito, o substituto da ligação umbilical que lhe
faltou depois de perder a mãe aos seis meses de idade. Sendo assim, entalando
as palavras entre sons que lhe saíam pela boca e pelo nariz, reforçou a ideia: Senhor.
Nada no mundo me poderia dar mais alegria do que acompanhar-vos neste transe.
Juntos, não há mouro que nos vença nem cataclismo que nos separe.
Era um exagero de linguagem, a capacidade de argumentação que
o pai lhe reconhecia, provavelmente por não ser tão prolixo no verbo e no
pensamento como o filho. Quem sabe, também, se Afonso V não sentiria as costas
resguardadas levando atrás de si o príncipe. Deste modo, mesmo contra o aviso
do Conselho Régio, aceitou a participação do futuro rei de Portugal na armada. A
decisão foi acertada. Mas mesmo que o rei não autorizasse, o príncipe já
tinha decidido que iria, nem que fosse clandestino num dos muitos navios de
armadores que acostavam a Lisboa, inaugurando reais viagens a Marrocos à
boleia. Felizmente não foi necessário chegar a extremos tão contemporâneos. O
pai não fazia nada sem que o filho lhe desse o seu parecer, uma subversão de poderes
que demonstra a influência do jovem sobre o genitor. O futuro João II foi
educado pelos melhores professores, um dos quais, pelo menos, veio de Itália
para lhe ensinar as Sete Artes
Liberais (são compostas pelo Trivium,
gramática, retórica e dialéctica, e pelo Quadrivium,
aritmética, geometria, astronomia e música), essenciais para a educação de um
príncipe a caminho de ser rei. Justo Baldino, um sábio dominicano e doutor em
ambos os Direitos para trasladar a latim as crónicas dos reis de Portugal, por
cá ficou entretido a educar o príncipe João, que, além do Trivium e do Quadrivium,
aprendeu também a ler e a escrever latim, rezando se fosse preciso na língua
das elites». In Jorge Sousa Correia, As Sombras de D. João II, Clube do Autor,
Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-155-0.
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