segunda-feira, 13 de abril de 2015

D João II. As Sombras. Jorge S. Correia. «Quem foi na verdade este monarca? Um príncipe perfeito ou um rei assassino? Onde se encontram as trevas de uma época de ouro? Como comandou o seu reinado?»

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Sonho. Glória. Poder e Intriga.
«(…) As regras têm vários sentidos, são também princípios, e o casamento entre o príncipe João e a princesa Leonor, nascida em 2 de Maio de 1458, era isso mesmo, um acordo entre dois homens que se estimavam, com regras escritas para que ninguém fugisse às responsabilidades. Mas havia necessidade de casá-los tão jovens? Havia. Afonso V vendo que o irmão gastava o tempo que Deus lhe tinha destinado, acertou com ele, em 1470, tudo o que fazia falta para concretizar o casamento. Neste mesmo ano, em Setembro, o infante Fernando morreu. O contrato de casamento viria a ser assinado em Janeiro de 1471, já o duque de Beja e de Viseu estava bem enterrado, um desenlace que não permitiu festas nem celebrações, e que nos deixa sem poder descrever mais um acontecimento da sociedade desse tempo. Não houve vestidos novos nem jóias resplandecentes, antes pelo contrário, todos se enfarpelaram de burel, um tecido grosseiro de lã que se usava para demonstrar sentimentos lastimosos. Se o príncipe João casou com a infanta dona Leonor sua prima, isso ficou a dever-se a duas razões determinantes: a falência da destreza do pai da noiva, por não ser capaz de tomar glória nas lutas que travou em Marrocos e morreu cedo, e, acima de tudo, porque o rei quis unir a maior Casa do reino (o infante D. Fernando, quando faleceu era o maior Senhor que nunca houve em Espanha, que não fosse Rei. Entenda-se aqui Espanha, como a Península Ibérica) com a Coroa. Por isso de novo a interrogação: será que um casamento destes, assente em tão precárias relações afectivas, poderá dar certo? A resposta para questões tão imbrincadas só pode vir noutras alturas e de estâncias mais altas, porque para o consórcio se realizar, lembro que por enquanto só há um contrato, será necessária a intervenção do papa de modo a dispensar os primos da consanguinidade. Esperemos então pelo licenciamento de sua santidade.
Todavia, enquanto a autorização vem e não vem, o príncipe, pouco dado aos vagarosos expedientes da época, não esteve para partilhar a ronçaria da Santa Sé. Sentia-se já casado, mesmo sem experimentar os humores e os odores da princesa, sabemos porquê, ela era ainda uma criança, quis juntar à sua maioridade um certificado significativo. Quando tomou conhecimento dos preparativos que o pai tinha em marcha para conquistar Arzila, impôs a sua presença na expedição. O rei já nessa altura ouvia com muita atenção o príncipe, desde que ele começou a acertar nas palavras, mas desta vez não achou graça à pretensão. Não vedes, meu filho, se por qualquer descuido de Deus vós perecerdes na batalha, não haverá quem me suceda? A principal coisa a que todos devemos olhar é saber bem morrer, meu pai, palavras que respondiam bem aos cuidados do progenitor. Mas o príncipe João continuava renitente. Sentia-se homem, a bem dizer já casado, aspirando juntar estas duas facetas à honrosa condição de cavaleiro que por certo tomaria depois do assalto à praça magrebina. Visto isso, nada melhor do que fazê-lo a matar mouros junto do pai, um homem que amava muito, o substituto da ligação umbilical que lhe faltou depois de perder a mãe aos seis meses de idade. Sendo assim, entalando as palavras entre sons que lhe saíam pela boca e pelo nariz, reforçou a ideia: Senhor. Nada no mundo me poderia dar mais alegria do que acompanhar-vos neste transe. Juntos, não há mouro que nos vença nem cataclismo que nos separe.
Era um exagero de linguagem, a capacidade de argumentação que o pai lhe reconhecia, provavelmente por não ser tão prolixo no verbo e no pensamento como o filho. Quem sabe, também, se Afonso V não sentiria as costas resguardadas levando atrás de si o príncipe. Deste modo, mesmo contra o aviso do Conselho Régio, aceitou a participação do futuro rei de Portugal na armada. A decisão foi acertada. Mas mesmo que o rei não autorizasse, o príncipe já tinha decidido que iria, nem que fosse clandestino num dos muitos navios de armadores que acostavam a Lisboa, inaugurando reais viagens a Marrocos à boleia. Felizmente não foi necessário chegar a extremos tão contemporâneos. O pai não fazia nada sem que o filho lhe desse o seu parecer, uma subversão de poderes que demonstra a influência do jovem sobre o genitor. O futuro João II foi educado pelos melhores professores, um dos quais, pelo menos, veio de Itália para lhe ensinar as Sete Artes Liberais (são compostas pelo Trivium, gramática, retórica e dialéctica, e pelo Quadrivium, aritmética, geometria, astronomia e música), essenciais para a educação de um príncipe a caminho de ser rei. Justo Baldino, um sábio dominicano e doutor em ambos os Direitos para trasladar a latim as crónicas dos reis de Portugal, por cá ficou entretido a educar o príncipe João, que, além do Trivium e do Quadrivium, aprendeu também a ler e a escrever latim, rezando se fosse preciso na língua das elites». In Jorge Sousa Correia, As Sombras de D. João II, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-155-0.

Cortesia de CAutor/JDACT