Os
anos da inocência, 1944-1974
«(…) Tinha vinte e três anos quando, em 1967, tive o meu primeiro contacto com
a Acção Socialista Portuguesa, constituída na Suíça, três anos antes, por
Francisco Ramos Costa, Manuel Tito Morais e Mário Soares. A minha actividade
política até então não passara de uma espécie de aprendizagem juvenil, no final
dos anos 50, com grupos de oposicionistas locais, sobretudo comunistas e
republicanos da cidade da Covilhã, onde nasci em 1944 e vivi até aos 17 anos. Era esporadicamente convidado, um
pouco como mascote, de tertúlias
anti-salazaristas de um grupo de homens que tinham, pelo menos, o dobro da
minha idade e, como único elo entre si, o gosto de boas jantaradas e o ódio ao regime. Contudo, não sei bem a origem exacta
dos meus sentimentos anti-salazaristas, até porque no seio da minha família
pouco se falava de política. O meu pai era um católico devoto e, na juventude,
tinha pertencido à Legião Portuguesa. Não por razões ideológicas, conforme viria
a apurar anos mais tarde, mas porque tal fazia parte das regras do seu círculo
de amigos que, naquele tempo, constituíam a classe média dominante daquele que
chegou a ser um dos mais importantes centros industriais do País. Imperava a
força do dinheiro e das grandes fortunas rapidamente acumuladas durante a
guerra. Enquanto fui crescendo, num ambiente imensamente feliz e despreocupado,
nunca vi os meus pais participarem em qualquer tipo de actividades políticas.
Eram um perfeito modelo da reduzida classe média que o regime salazarista
produzira. A minha mãe, hoje [na altura…] com 82 anos, vivia mais preocupada
com a educação dos seus quatro filhos e com o bem-estar da família embora, ao
contrário do que acontecia com meu pai, não fosse muito dada às práticas da
Igreja. Depois de ter sido comerciante, durante os primeiros anos da minha
infância, o meu pai associar-se-ia a uma empresa de tecelagem que, em virtude
da adesão de Portugal à EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre),
viria a conhecer um período de grande prosperidade, exportando a quase
totalidade da sua produção. À semelhança do que acontece em muitas famílias, eu
idolatrava o meu irmão mais velho, mas a nossa relação seria interrompida quando,
a partir dos doze anos, ele foi estudar para Lisboa. Naquele tempo só era possível
estudar no liceu local até ao segundo ano. A minha irmã tinha menos cinco anos do
que eu e o meu irmão mais novo menos dez. Eu desejava ardentemente seguir as
pisadas do meu irmão mais velho e estudar em Lisboa, mas logo que iniciei o
primeiro ciclo passou a ser possível estudar no liceu da Covilhã até ao quinto
ano. Ainda pensei que teria uma oportunidade quando, no início do terceiro ano,
me envolvi numa pequena briga como filho de um deputado da União Nacional. Numa
situação de evidente injustiça só eu seria punido com quinze dias de suspensão tendo
o meu pai decidido tirar-me do liceu. A minha esperança de ir para o Colégio Portugal,
na Parede, onde estava internado o meu irmão não seria entretanto concretizada.
Tinha aberto um colégio particular na cidade, o Colégio Moderno, onde eu então passaria
a estudar. Acontece que o seu director e meu professor de Português, era
ferozmente anti-salazarista e o ambiente no seio do colégio para a época agradavelmente
progressista. Quando Humberto Delgado visitou a Covilhã em campanha eleitoral, tinha
eu apenas catorze anos. A sua caravana eleitoral foi desviada pela polícia para
evitar a sua entrada na cidade pelo local onde o aguardava a maior multidão que
eu jamais vira concentrada. Na cidade sentia-se uma grande tensão mas também grande
entusiasmo e esperançae, sem entender muito bem o que estava em jogo, vivi
intensamente aquela curta campanha distribuindo panfletos e manifestos de porta
em porta. Não me recordo dos discursos, mas creio que foi então que se iniciou
a minha paixão pela política. Três anos depois, seguindo as pisadas de meu irmão
mais velho, obtive uma bolsa do American Field Service para estudar e viver com
uma família norte-americana na pequena cidade de Cedar Rapids, no midwest dos
Estados Unidos. Com esta família, com o seu filho Jon, da minha idade, e a
filha Toni, dois anos mais nova, e com os meus professores e colegas da Thomas Jefferson
High School aprenderia o á-bê-cê
da democracia e a felicidade de viver numa sociedade livre e descomplexada. As
gentes com quem ali convivi e com quem, em muitos casos, trinta e cinco anos depois,
ainda mantenho estreitas relações, tinham uma prática de vida na sua comunidade
e convicções baseadas na liberdade, na igualdade de oportunidade se na defesa intransigente
dos direitos humanos que, sem o afirmarem, tem mais que ver como socialismo democrático
descomplexado em que acredito, do que as expressões panfletárias de muitos
dos nossos socialistas oficiais. Vivi, pela TV, a fascinante experiência do presidente John
Kennedy, que viria a conhecer no Verão de 1962
nos jardins da Casa Branca em recepção por ele oferecida aos bolseiros finalistas
do American Field Service. Seriam, aliás, John Kennedy, Olof Palme e Leopold Senghor
as principais referências políticas da minha juventude. Embora em condições tão
diferentes e condicionados por realidades tão distintas desenvolveram, cada um
à sua maneira, experiências de progresso, justiça social e cultura que
permanecem a esperança do socialismo democrático neste fim de século (XX). Tive
a invulgar honra de conhecer os três, se bem que em épocas e de maneiras
diferentes. O meu contacto com Kennedy, no meio de estudantes ávidos de o
conhecer, foi meramente circunstancial, mas para mim a sua carismática
liderança representava a juventude, o humor e o informalismo que tanto iria
marcar o estilo dos novos dirigentes sociais-democratas europeus dos anos 70.
Com a sua Aliança para o Progresso
parecia querer quebrar com o estilo pesado da diplomacia dos anos 40, criando
esperanças renovadas nos povos do Terceiro Mundo que lutavam pela sua autodeterminação.
Também não disfarçava a sua simpatia pela social-democracia europeia e parecia disposto a repensar argumentos e posições
tradicionais para pôr fim ao avanço comunista [tendo] muitos dos patriotas
liberais que se sentiram intensamente atraídos pela mensagem de Kennedy
pertencido à Central Intelligence Agency». In Rui
Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN
972-20-1316-5.
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