De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…)
Apesar da grande antipatia pela nova religião, Procuraram nunca desrespeitar os
seus preceitos. Para eles, a grandeza reside no respeito, independentemente das
adversidades. O novo lar foi edificado com estranhos labirintos, becos e túneis
que, aos olhos de uma criança, como era a minha avó, não faziam sentido nenhum.
Na mesma proporção cresceram novos hábitos e costumes. Hábitos que, noutras alturas,
feriam sensibilidades de muito boa gente, contudo, a nova ordem impunha-se e,
de forma abrupta, pelo lar adentro. Não restavam grandes alternativas, trazer
para o dia-a-dia os novos costumes, da forma mais verosímil possível, era
imperativo. Passaram, com reflexos nos dias de hoje, a ser praticantes de algo
em que não acreditavam; a realização espiritual era nula; se dependesse única e
exclusivamente do cristianismo, o mergulho na perfeita escuridão era certo.
Estavam garantidos mais elementos para a quinta-coluna (conforme eram
considerados os conversos pelos cristãos-velhos no seio da igreja) do corpo da
Igreja, sem qualquer credibilidade na sociedade cristã e mais suspeitos do que
os próprios judeus. Papel activo e
efectivo na sociedade cristã? Nem pensar! Irremediavelmente isolados? Certo!
Independentemente
do isolamento a que erem sujeitos, o antigo rabino exteriorizava o seu abraço
fiel e sério à nova religião. As evidências estavam no facto de este ter confiado
os seus dois filhos à Igreja, para serem educados nas ordens religiosas.
Desconhece-se o enquadramento deste caso em particular, mas essa era a tradição
seguida pelos conversos sinceros, encarada como uma oportunidade para progredirem.
Como resultado disso viam-se, cada vez em maior número, estudantes conversos
nas universidades castelhanas. Era mais um elemento para aguçar o perigo
residente na luta constante entre os antigos e novos cristãos na busca de
posições influentes, fundamentalmente, no seio da Igreja. Os antigos cristãos
consideravam os conversos um perigo real, uma vez que a Igreja, na altura,
estava aberta a todas as origens e classes sociais. Apesar da verosimilhança
cristã dos meus ancestrais, materializada na mistura de palavras e actos com
vista a baralhar os olhares atentos que incidiam sobre nós, esse não era, em
termos particulares, o nosso problema, uma vez que a nossa encenação não ia,
nem podia, ir tão longe quanto isso, mas, por outro lado, a superficialidade da
nossa pseudo-fé cristã levantava-nos outros problemas que eram patentes aos olhos
dos verdadeiros conversos. Estes atiravam-se a nós com todas as suas garras. No
seu entender, o descrédito a que fomos todos votados resultava da nossa falta
de sinceridade cristã e das nossas práticas judaizantes sombrias. Mostravam as
mesmas garras ao judaísmo em geral. Em suma, era mais um arsenal anti-semita! Terá sido pura e simplesmente por zelo
religioso ou existiam outras motivações? Nunca chegámos a perceber a
verdadeira razão. Muitas vezes os ataques mais ferozes provinham daqueles que
já tinham estado do outro lado da barricada. Eram imbuídos de profundos
conhecimentos de rituais judaicos e teológicos capazes de fazer desvanecer a
sua natureza hostil ou falsidades e calúnias neles camuflados para mais
facilmente atingirem os objectivos pretendidos. Para os conversos, mesmo
aqueles que o fizeram de livre vontade, poucas foram as vantagens que daí
advieram, assistiu-se à exclusão destes de todos os cargos municipais. Esse era
apenas mais um episódio da perigosa batalha que estava e ser travada pelos antigos
e novos cristãos. De nada serviu a voz clerical que se insurgiu contra essa e
outras medidas, chegando mesmo a ameaçar com excomunhão os seus autores, mas
que não passaram de boas intenções, entretanto infrutíferas. As ramificações
eram demasiadas para que uma única voz pudesse ecoar. Assistia-se, sim, à
propaganda agitadora com eco significativo na fúria das populações contra os
conversos». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições
Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia
de Colibri/JDACT