segunda-feira, 20 de abril de 2015

Povo. Afonso Ribeiro. «Riu; mas a ideia do companheiro, perdido lá por umas terras tão distantes que nem supunha onde ficavam, deixou-a triste e mais cansada do que ao sair da vila Encarnação. Eu não sei, disse Santinho, no entanto sou do parecer que foi uma asneira…»


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«Povo: gente que trabalha, gente que luta também. Miséria, desamparo, lágrimas, sofrimento. Camada social esmagada sob o peso de uma vida amarga e injusta»

Hora de Folga
«Ana Pega chegou à rua e disse: Jesus, como estou cansada! Também eu..., respondeu a Caramilo, dando um ai. Não sentes fome? Uma fome de comer pedras! Tal e qual. parece-me que era capaz de comer um boi inteiro! Desde o almoço que andei com o sentido numas papas, que ficaram esperando por mim na panela. Papas? Há, que mundos não provo umas boas papas! O meu homem torce o nariz quando as vê. Deitaste-lhes bastante nabiça segada? A nabiça dá-lhes um gostinho… Deitei-lhes nabiça, então não havia de ter deitado? Para mim, papas sem nabiça não são papas. Estavam ao pé da casinha térrea da Caramilo, que ela morava ali a dois passos da vila Encarnação, despediram-se, Ana Pega prosseguiu andando ligeira. Vê se não vens tarde por causa da senhora, disse de repente a outra, já da soleira da porta. Ela voltou-se, respondeu na sua voz um pouco esganiçada: Mas nós nunca vamos tarde! No entanto tu ouviste-la ao almoço... Ora, conversa! Ela nunca se mostra satisfeita... Manda-a pentear macacos! Seguiu rua fora, num passo sacudido e resmungando lá por dentro. A senhora... Os remoques da senhora... Que queria ela mais? Trabalhavam como negras, desde o nascer ao pôr do sol que andavam numa roda viva e ainda por cima haviam de roubar às horas de descanso? É verdade que em sua casa não morava relógio por onde pudesse regular-se, mas, Deus lhe valesse! Pegavam no serviço ao mesmo tempo das outras pessoas que por ali andavam à jorna. Ou lá a patroa pensaria que pelo facto de serem mulheres tinham obrigação de pegar mais cedo? Uns metros além da taberna do Xavier encontrou-se com Santinho e Vagom, que vinham da quinta do dr. Anselmo. Eles pararam e Santinho quis saber se o Alberto já escrevera. Não, até à data ainda não deu sinal de vida, aquilo por aí não quer escrever sem primeiro juntar uns contos de réis para meter dentro da carta…
Riu; mas a ideia do companheiro, perdido lá por umas terras tão distantes que nem supunha onde ficavam, deixou-a triste e mais cansada do que ao sair da vila Encarnação. Eu não sei, disse Santinho, no entanto sou do parecer que foi uma asneira o ele ir para o Alentejo. O Alentejo é longe... E são terras estranhas... O pior de tudo ainda são as maleitas, acrescentou Vagom. Ouvi contar... Por aqui também se morre, atalhou-o Santinho. Com maleitas ou não, mas morre-se. Não é por isso que eu digo que ele fez mal… Eu penso que um pobre é pobre em toda a parte e que lá, no Alentejo, um qualquer não levanta mais a cabeça do que nós aqui... Eu bem teimei para que não fosse..., afirmou Ana Pega, como defendendo-se de uma acusação, que afinal ninguém lhe fizera. Não houve forma. Lá se avenha... Separaram-se, a mulher continuou a andar. Levava nos ouvidos as palavras cépticas de Santinho e levava as de Vagom também: Santinho matara-lhe uma esperança secreta que há dias andava cultivando e Vagom pusera-lhe um frio de medo no coração, Jesus, Virgem Santíssima, e se o seu Beto apanhasse as maleitas? Se o seu Beto morria? Não queria pensar em semelhante coisa e não obstante pensava, aquilo era mais forte que a sua vontade. Depois lembrou-se de que nessa noite tivera uns sonhos maus, uns sonhos mesmo esquisitos, e o frio em seu peito tornou-se mais frio e mais nítido se tornou o seu medo. Santinho tinha razão, oh!, sim, tinha razão: o seu Beto nunca devia ter abalado para uns sítios tão traiçoeiros como esses onde as doenças andavam à solta, onde a morte andava à solta. À solta na rua, como dois franganitos fugidos da capoeira, andavam Acácio e Adelaide, os filhos de Ana Pega. Brincavam na valeta». In Afonso Ribeiro, Povo, Editorial Ibérica, Porto, 1947, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Cortesia da E. Ibérica/JDACT