domingo, 6 de abril de 2014

Navegadores. Viajantes. Aventureiros Portugueses. Séculos XV e XVI. Luís Albuquerque. «Parece não oferecer dúvidas que, antes de condenado exercia em Lisboa a profissão de carpinteiro de naus. Que delito terá cometido para ser levado a ferros de el-rei e com uma condenação certamente pesada?»

António Fernandes, carpinteiro de naus na ribeira de Lisboa, por crime cometido foi condenado ao degredo.
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António Fernandes. O aventureiro na rota do ouro africano
«O seu espírito aventureiro e natural aptidão, fizeram dele um explorador e o primeiro português a atingir o reino do Monomotapa, no interior da Africa. António Fernandes iniciou a sua vida com o modesto ofício de carpinteiro de naus na ribeira de Lisboa; mas veio a ser o primeiro europeu a viajar pelo Monomotapa, o grande reino africano, que se situava entre os cursos dos rios Save e Zambeze, antes de 1516; procurou e encontrou as fontes do ouro que os povos negros iam vender a Sofala a portugueses, como antes o tinham vendido aos árabes que desciam nos seus navios a costa oriental da África, depois de desembocados do mar Vermelho ou (mais raramente) do golfo de Ormuz. Como muitos outros exploradores seus conterrâneos desta época, Fernandes deve ter sido punido com pesado castigo (talvez, até, a pena de morte) por qualquer delito grave que cometeu, e de todo ignoramos qual fosse; comutaram-lhe a pena sob condição de ser deixado algures na costa oriental africana, para conhecer a terra, anotar costumes, saber do comércio local, aprender a língua e tomar informações sobre o Preste João. Este procedimento da Coroa portuguesa era então habitual. O rei Manuel I suspendia amiúde sentenças severas aplicadas pelos tribunais a homens que tivessem infringido as leis do Reino, sob condição de serem deixados entregues à sua sorte, em algum lugar sobre o qual lhe interessava obter um conhecimento aprofundado. Uma grande parte destes degredados não resistia, obrigados, como ficavam, a viver pelos seus próprios meios em terras de mau clima e com muita frequência em contacto com gentes pouco dispostas a admiti-los nas suas comunidades ou até a manter com eles os mais leves contactos; e isto quando não decidiam pura e simplesmente assassinar os intrusos. Porém, outros, embora em número escasso souberam captar a simpatia dos povos com quem eram obrigados a manter contactos, aprendiam com facilidade as línguas locais, adaptavam-se aos usos e costumes das sociedades africanas ou ameríndias, e, dotados de sólida constituição física, resistiam às inclemências dos climas e das doenças.
Fernandes entra, é claro, no número destes últimos, de que, de resto, há outros exemplos (casos de João Fernandes, na costa da Guiné, e de João Machado, na África Oriental). Fernandes deve ter andado pela Índia com muçulmanos, e pela costa oriental de África, entre Sofala e Quíloa, cerca de uns vinte anos, não se limitando a viagens marítimas costeiras entre aqueles dois postos, com visitas a Melinde e a Mombaça, mas viajando também até qualquer porto indostânico, e depois penetrando no continente africano algumas centenas de quilómetros, pelo menos por duas vezes, como vamos ver. Se alguma coisa de significativo se sabe hoje das suas viagens, isso deve-se à feliz sobrevivência de um relato sobre elas, que Hugh Tracy estudou com cuidado e publicou com desvelo, e adiante aproveitaremos a partir da sua tradução portuguesa, devida a Caetano Montez. Mas da sua agitada vida é pouquíssimo o que chegou ao nosso conhecimento.
Parece não oferecer dúvidas que, antes de condenado exercia em Lisboa a profissão de carpinteiro de naus; mas este é o único dado aparentemente seguro antes das andanças orientais de Fernandes, visto ser afirmado expressamente por João de Barros e repetido por Damião de Góis. Que delito terá cometido para ser levado a ferros de el-rei e com uma condenação certamente pesada? Eis uma pergunta a que não sabemos dar resposta; podemos apenas dizer que, graças ao crime cometido, António Fernandes veio a adquirir uma justa celebridade, que, sem qualquer dúvida, não granjearia se permanecesse entregue à sua tarefa de ajudar a construir navios nas taracenas da capital do Reino.
São tão escassas as notícias que dele temos que nem sequer pôde ser apurado com segurança se seguiu embarcado na primeira armada, de Vasco da Gama, ou na imediata, de Pedro Álvares Cabral. Temos algumas informações de um outro degredado da primeira destas armadas, o João Machado. E é possível que Álvaro Velho, autor do Diário da viagem, se encontrasse nas mesmas condições; este, não tendo chegado a ser utilizado em qualquer tarefa temerária de exploração em terra, na viagem de retorno desembarcou na Guiné, e aí se deixou ficar durante alguns anos, por não estar seguro de que, voltando ao Reino, lhe fosse dada por expiada a pena a que fora condenado; limitamo-nos neste particular a repetir presunções de Fontoura Costa, que nos parecem bastante plausíveis». In Luís de Albuquerque, Navegadores, Viajantes, Aventureiros Portugueses, Séculos XV e XVI, António Fernandes, Editorial Caminho, Lisboa, 1987.

Cortesia de Caminho/JDACT