quinta-feira, 24 de abril de 2014

Viriato. O nosso avô. Príncipes de Portugal. Suas grandezas e misérias. Aquilino. «Mas semelhante lida não os inibia de exercer outros ofícios, um deles velho como o Mundo: saltear os haveres do semelhante. No fundo, era uma prática como outra qualquer, com todos os foros de universalidade»

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Viriato. O nosso avô
«Os romanos, quando taxaram Viriato de dux latronum, capitão de salteadores, não o caluniaram totalmente. Na sua serra era um criador de gado e, por extensão ao tempo desta indústria, o primeiro pegureiro. Quem tinha rebanhos, não só aviava o surrão aos zagais que os haviam de conduzir aos pastos, como pastoreava também. Bem certo que não seria uma só vez nem duas que este homem, mais tarde investido das vírias, daí viriato, seguisse, encostado ao cajado ou à lança, os passos dos seus merinos ou corresse, de par com os sabujos, a escorraçar a alcateia esfomeada. Pastores eram todos os homens naquelas épocas de economia rudimentar e porventura fosse este o mester por excelência. O Velho Testamento celebra os patriarcas e figuras gradas do patriarcado, Labão, Isaque, Jacob, antes de mais na qualidade de senhores de densíssimas manadas, hábeis, em correspondência, nas sortes e manhas do pegulhal. Se se fizesse um paralelo entre as tribos nómadas de que procedeu Israel e as tribos hispânicas de que a certa altura desabrocharam Viriato, Sertório e os heróis de Numância, haveria muito que distinguir em grau de civilização?
Os lusitanos davam-se à pastorícia, uma das primeiras actividades do homem ao romper da idade eneolítica, como a gente da borda de água se dava à pesca. Mas semelhante lida não os inibia de exercer outros ofícios, um deles velho como o Mundo: saltear os haveres do semelhante. No fundo, era uma prática como outra qualquer, com todos os foros de universalidade. A forma é que tem variado, rebuçada em leis e mandamentos, especiosamente divergentes. Nada mais natural, portanto, que as tribos das serras, onde a vida era áspera e difícil e os moradores mais de uma vez deviam adormecer com o estômago a ladrar, acumulassem com a função comum a de salteadores. Era uma ordem de cavalaria de tantas consagradas pela História, como, por exemplo, mais tarde a do Templo. Roubavam-se mais ou menos de pé fresco uns aos outros, e em caterva abatiam-se sobre as terras fartas e latinizadas do Sul. Em três tempos, então, passavam os galfarros e tudo que tivesse aparência de boa presa. O ditado: olho vê, pé vai, e mão pilha, marca o ritmo hispânico quanto a tais empreendimentos. É mesmo possível que a sorte destas expedições constituísse títulos de glória para os seus autores. O mais afortunado receberia o preito da fama como nas batalhas os valentes. A moral na Lusitânia, assim era em Sparta, representa um ludíbrio à face das tábuas brônzeas do Decálogo. E em nome de que direito vamos condenar tais costumes? Melhor seria dizer: cada serra com sua consciência, do que cada terra com seu uso. Pilhar o vizinho, celtibérico ou vetão, apaniguado do romano, era virtude e não crime. Não mareiam pois a coroa de louros de Viriato os adjectivos pejorativos que Valério Máximo, Apiano e Cassiodoro lhe infligem, tais como ladrão refinado e capitão de quadrilha. - Com muita honra, diria ele.

Viriato é a Lusitânia personificada. Só remontando nas idades e pairando de alto, como um avião se libra no espaço, se pode ter alguma probabilidade de acertar com o panorama que oferecia ao tempo a parte ocidental da Ibéria. Transcorreram dois mil anos, e durante eles operou-se uma transformação radical tanto à superfície como no âmago das coisas. Bem certo que os rios continuam a serzir a paisagem com seus idênticos nastros brancos, e as mesmíssimas cordilheiras delimitam os horizontes. Tal circunstância não impediu todavia que as perspectivas se alterassem, marcadamente aqui e além. Do mesmo modo variou a configuração florestal e geopolítica do território. Na época do herói lusitano, a lombas e colinas cobria-as um manto invariável de verdura, e de modo algum nos entreluziam à vista salpicadas de povoações e de casais como hoje. Os lugares reduziam-se a um número insignificante, e empoleirados nos cerros e cumeadas coincidiam com o desnudamento florestal. As planícies eram sítios proverbiais de traição e de morte.
À altura em que os romanos lançaram olhos cúpidos para a Hispânia, o solo das províncias interiores devia soçobrar debaixo de um alteroso oceano vegetal. Mato e bosque eram a sua vestidura própria, salvo, como dizemos, os cimos das serras em que os naturais haviam eleito as moradias, elementares ninhos de guincho aqui, habitações castrejas além, citânias, rudimentos já das urbes históricas, lá de largo em largo». In Aquilino Ribeiro, Príncipes de Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do Brasil, Lisboa, 1952.

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