Viriato. O nosso avô
«Os romanos, quando taxaram Viriato
de dux
latronum, capitão de salteadores, não o caluniaram totalmente. Na sua
serra era um criador de gado e, por extensão ao tempo desta indústria, o
primeiro pegureiro. Quem tinha rebanhos, não só aviava o surrão aos zagais que
os haviam de conduzir aos pastos, como pastoreava também. Bem certo que não
seria uma só vez nem duas que este homem, mais
tarde investido das vírias, daí viriato, seguisse, encostado ao cajado
ou à lança, os passos dos seus merinos ou corresse, de par com os sabujos, a
escorraçar a alcateia esfomeada. Pastores eram todos os homens naquelas épocas
de economia rudimentar e porventura fosse este o mester por excelência. O Velho
Testamento celebra os patriarcas e figuras gradas do patriarcado, Labão,
Isaque, Jacob, antes de mais na qualidade de senhores de densíssimas manadas,
hábeis, em correspondência, nas sortes e manhas do pegulhal. Se se fizesse um
paralelo entre as tribos nómadas de que procedeu Israel e as tribos hispânicas
de que a certa altura desabrocharam Viriato,
Sertório e os heróis de Numância, haveria muito que distinguir em grau de civilização?
Os lusitanos davam-se à pastorícia, uma das primeiras actividades do
homem ao romper da idade eneolítica, como a gente da borda de água se dava à
pesca. Mas semelhante lida não os inibia de exercer outros ofícios, um deles
velho como o Mundo: saltear os haveres do semelhante. No fundo, era uma
prática como outra qualquer, com todos os foros de universalidade. A forma é
que tem variado, rebuçada em leis e mandamentos, especiosamente divergentes.
Nada mais natural, portanto, que as tribos das serras, onde a vida era áspera e
difícil e os moradores mais de uma vez deviam adormecer com o estômago a
ladrar, acumulassem com a função comum a de salteadores. Era uma ordem de
cavalaria de tantas consagradas pela História, como, por exemplo, mais tarde
a do Templo. Roubavam-se mais ou menos de pé fresco uns aos outros, e em
caterva abatiam-se sobre as terras fartas e latinizadas do Sul. Em três tempos,
então, passavam os galfarros e tudo que tivesse aparência de boa presa. O
ditado: olho vê, pé vai, e mão pilha,
marca o ritmo hispânico quanto a tais empreendimentos. É mesmo possível que a sorte
destas expedições constituísse títulos de glória para os seus autores. O mais
afortunado receberia o preito da fama como nas batalhas os valentes. A moral na
Lusitânia, assim era em Sparta, representa um ludíbrio à face das tábuas
brônzeas do Decálogo. E em nome de que direito vamos condenar tais
costumes? Melhor seria dizer: cada
serra com sua consciência, do que cada terra com seu uso. Pilhar o vizinho,
celtibérico ou vetão, apaniguado do romano, era virtude e não crime. Não
mareiam pois a coroa de louros de Viriato
os adjectivos pejorativos que Valério Máximo, Apiano e Cassiodoro lhe infligem,
tais como ladrão refinado e capitão de
quadrilha. - Com muita honra, diria ele.
Viriato é a Lusitânia
personificada. Só remontando nas idades e pairando de alto, como um avião se
libra no espaço, se pode ter alguma probabilidade de acertar com o panorama que
oferecia ao tempo a parte ocidental da Ibéria. Transcorreram dois mil anos, e
durante eles operou-se uma transformação radical tanto à superfície como no
âmago das coisas. Bem certo que os rios continuam a serzir a paisagem com seus
idênticos nastros brancos, e as mesmíssimas cordilheiras delimitam os
horizontes. Tal circunstância não impediu todavia que as perspectivas se
alterassem, marcadamente aqui e além. Do mesmo modo variou a configuração
florestal e geopolítica do território. Na época do herói lusitano, a lombas e colinas
cobria-as um manto invariável de verdura, e de modo algum nos entreluziam à
vista salpicadas de povoações e de casais como hoje. Os lugares reduziam-se a
um número insignificante, e empoleirados nos cerros e cumeadas coincidiam com o
desnudamento florestal. As planícies
eram sítios proverbiais de traição e de morte.
À altura em que os romanos lançaram olhos cúpidos para a Hispânia, o
solo das províncias interiores devia soçobrar debaixo de um alteroso oceano
vegetal. Mato e bosque eram a sua vestidura própria, salvo, como dizemos, os
cimos das serras em que os naturais haviam eleito as moradias, elementares
ninhos de guincho aqui, habitações castrejas além, citânias, rudimentos já das
urbes históricas, lá de largo em largo». In Aquilino Ribeiro, Príncipes de
Portugal, Suas grandezas e misérias, Livros do Brasil, Lisboa, 1952.
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