segunda-feira, 28 de abril de 2014

Rumor Branco. Almeida Faria. «… contudo ficou-lhes a raiva na garganta quando cantam às noites na parada praça: ó moças nã querom casar com ganhões nã ganhom avondo pra comprar botões, ganhões…»

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II Fragmento
«(…) Pilhando perus, patos e galinhas, além das alfaias tidas no frascal e na ucharia, malteses que armam armadilhas aos coelhos bravos e pescam arrãs para vender na vila a tostão o par, par de pernas brancas como de mulher, malteses que evitam andar à foice jogados e ao rabo de arado pela tutimeia ao fim e ao cabo que não dá para mais que quase nada, e o velho Custódio explode em ódio: queria era saber quem foram os gajos, os grandes cab… cos hê-de caçári, faço uma batida nesses morraçais, mas se os cobrem os gajos cá da casa? Já tudo se aguarda destes revoltados, melhor é buscar o cabo da guarda, a gente havemos de lhes ir aos quitos ou ê rachos. E os homens de São Marcos afastaram-se, Daniel João ouvia ainda suas falas, depois a noite vencia a resistência das palavras, com um surdo baque dominava as belgas secas e cheias de sede que as chuvas outonais viriam saciar, quando as pedras tinham já esquecido toda a sombra numa tarde sem ar que recolhera aves e homens enfrentando um sol impiedoso tombavam trespassados de sono de cansaço suando em cada póro de cada vida imóvel e as vozes vinham desde os brancos montes baixos e campos cor de cinza sem uma pinga de água, quando tudo aguardava a sua vinda, ela chegou enfim, a tempestade, e bátegas tombaram durante longos dias e houve grandes bandos voando para longe e logo era a madrugada crescendo das funduras da terra fecunda e escura na ténue luz azul e aguada em que Maria da Pureza o aguardava no pinhal e quando o viu correu para ele, abraçou-o, contou aquela aventura (nessa mesma noite o pai, os guardas, os criados toparam por atalhos ao pé da vila com um galego carregando um saco às costas e agarraram-no e levava criação já morta, saltou-lhe Custódio em cima e quis saber ao certo quantos gatunos eram e quando se viu que ia sozinho mais o pai se irritou por vir com tantos homens e isso deve-o ter sentido o vivo do ratinho que se mostrou valente e lhe atirou à cara palavras verdadeiras ao que Custódio pra se impor quis responder a toque do vergalho torcido e o outro testa-erguida sem sequer tentar fugir até que o pai turvou e lhe arrumou na cabeça com força junto à fonte e dessa é que ele tremeu e tombou morto mas Custódio disse que era fita e deu-lhe com mais força sem ver que o tinha matado e quando percebeu não queria crer porque não tinha querido aquilo), aquela história de homens de além-do-Tejo, homens de olhar fechado e demorada fala, de terra entranhada nas mãos curvas não podendo abrir-se de tanto agarrar sacho e enxada, homens que nunca se revoltaram de verdade, contudo ficou-lhes a raiva na garganta quando cantam às noites na parada praça: ó moças nã querom casar com ganhões nã ganhom avondo pra comprar botões, ganhões que Daniel João encontrava, cruzava, em quem dava encontrões, mal reparando neles como naquele velho cego de guitarra às esquinas cantando o seu fadito com olhos tão vazios e vacilante cabeça atenta à espera e bengala cansada encostada ao lado e côncavas órbitas escancaradas sem sequer o disfarce de óculos fumados, alto ossudo magro, a força em potência na rigidez dos membros aguardando a acção nunca vinda, na veloz viragem da cabeça ao mais subtil ruído, no bater regular dos pés nas pedras da calçada, mas já passara há séculos pelo cego e continuava caminhando através da manhã da vila e ia ter com ela. Ele estava anos antes no cinema, ao lado uma rapariga atraente sem idade vendo Subitamente no Verão Passado e tocou-lhe na perna e ela não se moveu e ele deixou a sua unida, surpresa angustiada, e logo estavam abraçados, numa mistura de obrigação e ternura a apalpava, braços mamas coxas ancas, o filme evoluía mais insólito, um homem ao som alucinante duma banda de latas era morto, por um vago medo agarraram-se as mãos, apertaram-nas muito, sentiu que a dela era rugosa e fria, teve um estremecimento, quase nada a princípio, mais intenso depois até que estava já tremendo todo, largou-lhe a mão e ela olhou-o, deve tê-lo olhado, não sabia, ele não olhou mas viu-lhe o olhar admirado e depois decerto ela voltou a cara com vergonha dele ou dela ou talvez de ambos e ele tremia sempre, e escutava vagas palavras, e o sentido das imagens lhe escapava começou a beliscar as próprias pernas, agarrava entre os dedos a pele e apertava ate fazer doer, apertava até que a dor não existia mais porque lhe ultrapassara já a margem, ficava uma sensação vaga que aos poucos, ao fim dum tempo lento, serenava, perdia intensidade, terminava, de longe em longe ainda um brusco estremeção por todo o tronco como quando criança a seguir a chorar, até que enfim acalmou e o filme acabou, ela levantou-se devagar caminhou para a porta no meio da multidão, ele saiu logo atrás dela que desceu as escadas ignorando-o, alguém entretanto meteu-se adiante, perdeu-a de vista, virou à direita, não a viu, correu, descobriu-a alguns metros à frente, prosseguiu depressa, afinal não era, ficou parado frustrado como quem apanhou no chapéu a borboleta bela e foi a vê-la ela fugiu e era feia mas queria conhecê-la, retê-la ao menos um momento, saber como, quem era, olhou ainda à volta, desistiu em seguida e com fúria insofrida começou a subir a avenida». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT