II Fragmento
«(…) Pilhando perus, patos e galinhas, além das alfaias tidas no
frascal e na ucharia, malteses que armam armadilhas aos coelhos bravos e pescam
arrãs para vender na vila a tostão o par, par de pernas brancas como de mulher,
malteses que evitam andar à foice jogados e ao rabo de arado pela tutimeia ao
fim e ao cabo que não dá para mais que quase nada, e o velho Custódio explode
em ódio: queria era saber quem foram os gajos, os grandes cab… cos hê-de
caçári, faço uma batida nesses morraçais, mas
se os cobrem os gajos cá da casa? Já tudo se aguarda destes revoltados,
melhor é buscar o cabo da guarda, a gente havemos de lhes ir aos quitos ou ê
rachos. E os homens de São Marcos afastaram-se, Daniel João ouvia ainda suas
falas, depois a noite vencia a resistência das palavras, com um surdo baque dominava
as belgas secas e cheias de sede que as chuvas outonais viriam saciar, quando
as pedras tinham já esquecido toda a sombra numa tarde sem ar que recolhera
aves e homens enfrentando um sol impiedoso tombavam trespassados de sono de
cansaço suando em cada póro de cada vida imóvel e as vozes vinham desde os
brancos montes baixos e campos cor de cinza sem uma pinga de água, quando tudo
aguardava a sua vinda, ela chegou enfim, a tempestade, e bátegas tombaram
durante longos dias e houve grandes bandos voando para longe e logo era a
madrugada crescendo das funduras da terra fecunda e escura na ténue luz azul e
aguada em que Maria da Pureza o aguardava no pinhal e quando o viu correu para
ele, abraçou-o, contou aquela aventura (nessa
mesma noite o pai, os guardas, os criados toparam por atalhos ao pé da vila com
um galego carregando um saco às costas e agarraram-no e levava criação já morta,
saltou-lhe Custódio em cima e quis saber ao certo quantos gatunos eram e quando
se viu que ia sozinho mais o pai se irritou por vir com tantos homens e isso deve-o
ter sentido o vivo do ratinho que se mostrou valente e lhe atirou à cara
palavras verdadeiras ao que Custódio pra se impor quis responder a toque do
vergalho torcido e o outro testa-erguida sem sequer tentar fugir até que o pai turvou
e lhe arrumou na cabeça com força junto à fonte e dessa é que ele tremeu e
tombou morto mas Custódio disse que era fita e deu-lhe com mais força sem ver
que o tinha matado e quando percebeu não queria crer porque não tinha querido
aquilo), aquela história de homens de além-do-Tejo, homens de olhar fechado
e demorada fala, de terra entranhada nas mãos curvas não podendo abrir-se de
tanto agarrar sacho e enxada, homens que nunca se revoltaram de verdade, contudo
ficou-lhes a raiva na garganta quando cantam às noites na parada praça: ó moças nã querom casar com ganhões nã
ganhom avondo pra comprar botões, ganhões que Daniel João encontrava, cruzava,
em quem dava encontrões, mal reparando neles como naquele velho cego de
guitarra às esquinas cantando o seu fadito com olhos tão vazios e vacilante
cabeça atenta à espera e bengala cansada encostada ao lado e côncavas órbitas
escancaradas sem sequer o disfarce de óculos fumados, alto ossudo magro, a
força em potência na rigidez dos membros aguardando a acção nunca vinda, na
veloz viragem da cabeça ao mais subtil ruído, no bater regular dos pés nas
pedras da calçada, mas já passara há séculos pelo cego e continuava caminhando
através da manhã da vila e ia ter com ela. Ele estava anos antes no cinema, ao
lado uma rapariga atraente sem idade vendo Subitamente no Verão Passado
e tocou-lhe na perna e ela não se moveu e ele deixou a sua unida, surpresa
angustiada, e logo estavam abraçados, numa mistura de obrigação e ternura a
apalpava, braços mamas coxas ancas, o filme evoluía mais insólito, um homem ao
som alucinante duma banda de latas era morto, por um vago medo agarraram-se as
mãos, apertaram-nas muito, sentiu que a dela era rugosa e fria, teve um
estremecimento, quase nada a princípio, mais intenso depois até que estava já
tremendo todo, largou-lhe a mão e ela olhou-o, deve tê-lo olhado, não sabia,
ele não olhou mas viu-lhe o olhar admirado e depois decerto ela voltou a cara
com vergonha dele ou dela ou talvez de ambos e ele tremia sempre, e escutava vagas
palavras, e o sentido das imagens lhe escapava começou a beliscar as próprias
pernas, agarrava entre os dedos a pele e apertava ate fazer doer, apertava até
que a dor não existia mais porque lhe ultrapassara já a margem, ficava uma sensação
vaga que aos poucos, ao fim dum tempo lento, serenava, perdia intensidade,
terminava, de longe em longe ainda um brusco estremeção por todo o tronco como
quando criança a seguir a chorar, até que enfim acalmou e o filme acabou, ela levantou-se
devagar caminhou para a porta no meio da multidão, ele saiu logo atrás dela que
desceu as escadas ignorando-o, alguém entretanto meteu-se adiante, perdeu-a de
vista, virou à direita, não a viu, correu, descobriu-a alguns metros à frente,
prosseguiu depressa, afinal não era, ficou parado frustrado como quem apanhou
no chapéu a borboleta bela e foi a vê-la ela fugiu e era feia mas queria
conhecê-la, retê-la ao menos um momento, saber como, quem era, olhou ainda à
volta, desistiu em seguida e com fúria insofrida começou a subir a avenida». In
Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN
972-21-0746-1.
Cortesia de Caminho/JDACT