O ‘Arranque’ dos Descobrimentos. O infante Fernando foi realmente um mártir
abandonado à sua sorte?
«(…) Quem visitar o acervo do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa,
deparará com um tríptico a óleo de meados do século XV, com cerca de um metro
de altura e com sinais evidentes de degradação; no painel do meio está uma
figura solitária, de pé e vestida de negro, com barba e expressão profundamente
triste. Trata-se do infante Fernando,
o filho mais novo de João I, cativo dos Marroquinos em Fez. A história
é célebre e está há muito incrustada nos anais do imaginário nacional: duas
décadas depois do sucesso de Ceuta, os Portugueses regressaram, finalmente, à
conquista de Marrocos, desta vez tendo como alvo a cidade de Tânger. Contudo, o
contingente militar português, sob o comando de Henrique, não só falhou a conquista da cidade como foi cercado
pelos inimigos. Obrigado à rendição, e para permitir o regresso do exército a
Portugal, Henrique concordou em
devolver Ceuta, deixando, entre outros, o seu irmão como penhor do cumprimento
do acordo. Todavia, os Portugueses nunca o fizeram e Fernando acabou por morrer em cativeiro, em Fez, alguns anos mais
tarde. A derrota e o calvário do infante refém causaram uma comoção nacional,
originaram divisões na corte e na sociedade e adicionaram um nome ao
martirológio português. Rapidamente se espalhou a história de que Fernando se terá resignado à sua sorte
e acelerado, e selado, o seu próprio destino, preferindo a morte à perda de
Ceuta, tornando-se, assim, um modelo de virtudes cristãs e um mártir. A
principal fonte informativa do cativeiro é o relato escrito pelo seu secretário,
frei João Álvares, que o acompanhou na prisão e que foi posteriormente
libertado. Alguns anos após a sua morte, o corpo de Fernando foi resgatado e depositado no Mosteiro da Batalha, dando origem
a toda uma devoção popular, que o tomou por santo e os seus restos mortais, por
relíquias. Assim nasceu o Infante
Santo. Como nunca foi beatificado ou canonizado pela Igreja Católica, o
seu culto foi malvisto pelas autoridades eclesiásticas e, no século XVII,
chegou mesmo a ser proibido. Recentemente, o ex-arcebispo de Braga, Eurico Dias
Nogueira, defendeu a retoma do processo da sua canonização.
Como é fácil entender, a questão do sacrifício
vs. Abandono
de Fernando fez correr muita tinta e
foi motivo de controvérsia. Os autores que estudaram esta época e esta questão,
e que foram muitos, dado o especial fascínio que os filhos de João I, a Ínclita
Geração, sempre suscitaram junto dos historiadores portugueses, analisam-na
de vários modos e segundo diversas perspectivas. Há quem assuma a visão
tradicional do martírio, quem siga as fontes portuguesas de perto e acuse o rei
de Fez de má-fé e perfídia, quem acuse o infante Henrique de calculismo e de
insensibilidade, quando não de egoísmo, porque foi ele o responsável pelo
desastre e quem fora inicialmente designado para ficar como refém, e quem aponte
a indecisão do rei e a oposição de vários sectores da sociedade a devolver
Ceuta e honrar o acordo. Ao contrário do que por vezes é dado a ler, a
expedição a Tânger não foi uma decisão precipitada e forçada pelo infante
Henrique. Tratou-se, pelo contrário, de um projecto amadurecido durante, pelo menos,
quatro anos. Foi em 1433 que surgiu
novamente a ideia de retomar a guerra. Tal como aquando de Ceuta, as opiniões
dividiram-se entre Granada e Marrocos mas, desta vez, a aventura militar não
colhia apoio unânime e não suscitava grande entusiasmo. Exigia dinheiro e
recursos e obrigava ao lançamento de impostos adicionais.
Além disso, a tomada de Ceuta não trouxera proveitos, mas despesas,
porque era necessário sustentar uma guarnição militar e abastecer
permanentemente a cidade, que passou a estar sujeita a ataques frequentes. Por
fim, havia dúvidas sobre a própria legitimidade destas iniciativas. A opinião
do infante João foi, a este respeito, lapidar: fazer guerra aos Mouros não era
serviço de Deus e não trazia honra nem proveito. O parecer que então
escreveu não deixa grandes dúvidas, quando afirma que não vi nem ouvi que Nosso Senhor,
nem algum dos seus apóstolos, nem os doutores da lgreja, mandassem que
guerreassem infiéis, mas antes por pregação e milagres os mandou converter.
A morte de João I adiou o projecto, que só foi retomado em 1436. Então, já Granada estava fora de questão e o problema resumia-se
agora a ir ou não a Tânger. O novo rei Duarte I convocou cortes, reuniu a
família real e consultou juristas italianos, mas hesitou antes da decisão
final.
Após o desastre, a decisão de devolver Ceuta não era menos difícil. Os
Portugueses oscilaram entre cumprir o acordo e reaver Fernando, pagar um resgate em dinheiro em substituição de Ceuta e
preparar uma nova expedição militar. Houve divisões e opiniões opostas,
arrastamento das negociações e, inclusive, uma tentativa para libertar o
infante prisioneiro em Fez. Tudo isto agravava, evidentemente, a sua situação e
as condições do seu cativeiro. Diz-se que o irmão Duarte morreu prematuramente
devido ao impasse e ao desgosto causado pela situação do irmão». In
Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Porque foi
Conquistada Ceuta? O arranque dos Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa,
2013, ISBN 978-989-626-498-7.
Cortesia de E. dos Livros/JDACT